por Luiz Santiago
INTRODUÇÃO
Há, no cinema, os que fazem escultura (como Resnais), os que fazem pintura (como Eisenstein), os que filosofam (como Rossellini), os que fazem cinema (como Chaplin), os que fazem romance (como Visconti), os que fazem poemas (como Godard), os que fazem teatro (como Bergman), os que fazem circo (como Fellini), os que fazem música (como Antonioni), os que fazem ensaios (como Andrzej Munk e Rosi) e os que, dialética e violentamente, materializam o sonho: este é o Buñuel.
Glauber Rocha
Desde a sua estreia no cinema em 1928, com o icônico Um cão Andaluz, Luis Buñuel provocou a ira da igreja e da ala conservadora da sociedade com seus provocativos “temas condenáveis”.
Em 1930, em seu segundo filme, A idade do ouro, o diretor espanhol quebrou a linha da alusão puramente simbólico-surrealista quando realizou uma de suas sequências finais mais patéticas, protagonizada por um grupo de burgueses – um deles fantasiado de Cristo – que saem de um castelo onde estiveram “na mais brutal das orgias” durante 120 dias – a mesma duração de tempo da futura Sodoma Salò de Pier Paolo Pasolini.
Condenado pelas autoridades de muitos países, pela igreja e por associações francesas como a Liga dos Patriotas e a Liga Anti-Semita, que bombardearam o cinema no Quartier Latin onde era exibido, A idade do ouro tornou-se o manifesto de Buñuel contra as instituições sociais, que seriam alvo constante de suas críticas.
Em seu documentário sobre a pobreza rural e a riqueza da igreja, Terra sem Pão (Las Hurdes, 1932), Buñuel abriu as portas para sua saída definitiva da Espanha, o que o levaria a mais de uma década sem filmar.
Em 1947, Buñuel mudou-se para o México, onde voltou a filmar, sob produção de Oscar Dancigers, produtor russo que fugira da Paris ocupada pelos nazistas. Parte dessa fase mexicana de Buñuel é de filmes comerciais, todavia, mesmo nessas obras mais “distribuíveis e consumíveis”, o tom mordaz com que o diretor arquiteta as histórias não deixa dúvida de que jamais abandonou suas ideias artísticas e políticas.
O primeiro grande sucesso desse período foi o filme Os Esquecidos (1950), obra agressivamente provocante que expõe sem sentimentalismo ou “soluções constitucionais” as questões sociais que criam e perpetuam os desafortunados, obra que rendeu a Buñuel o prêmio de Melhor Diretor em Cannes.
O diretor volta ao “tema eclesiástico” em 1958, com o filme Nazarin, obra que reveste a igreja de um ingrato “espírito de Judas”, e questiona a caridade cristã. É em Nazarin que o cineasta planta a semente da desvirtude, tema central de três de suas obras futuras, a tríade que tomaremos em análise neste artigo.
Por narrarem histórias de comportamentos que se alteram drasticamente e que circulam o afastamento do homem daquilo que enfaticamente acredita ou deseja exibir, chamamos os três últimos filmes de Buñuel no México de Trilogia da Desvirtude.
Viridiana (1961), O Anjo Exterminador (1962), e Simão do Deserto (1965), são filmes que despem as personagens de suas posturas, e trazem à tona os seus anseios e medos. Buñuel expõe as personagens desses três filmes a diversas influências e adversidades, e observa com um sorriso cinicamente indulgente os seus destinos finais, afirmando com gosto a sua mensagem: assim é o ser humano.
NO CAMINHO DOS PECADORES
Bem-aventurado [aquele] que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores.
Salmos 1.1
Co-produzido por México e Espanha, e vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, o irônico Viridiana (1961), é a abertura da trina desvirtude de Buñuel, e o filme onde se encontra a sua primeira apóstata da fé.
A película conta a história de Viridiana (Silvia Pinal), noviça que é convidada por seu solitário tio para passar alguns dias em sua casa. Durante todo o tempo, o tio tenta seduzi-la de várias maneiras. Certa manhã, ao ouvir a declaração (mentirosa) do velho parente, de que ele a havia possuído enquanto ela estava inconsciente (por ter bebido uma xícara de café com uma substância que a deixou desacordada), Viridiana retorna imediatamente para o convento, mas é avisada, no caminho, que o tio acabara de morrer. Consternada e estranhamento confusa, a jovem noviça volta para a casa do tio, onde passa a morar juntamento com o primo Jorge (Francisco Rabal, o padre Nazário de Nazarin) e com um grupo de mendigos que resolve abrigar na propriedade, uma espécie de caridade-compensação por seu afastamento do convento. Lentamente, os acontecimentos empurrarão Viridiana para “o outro lado da margem”, e sua fé esmorece.
A abertura do filme é o Aleluia do Messias de Handel. Enquanto os créditos iniciais são apresentados sob um fotograma do convento onde se encontra a protagonista, a música cria um clima pio e prega o que não acontecerá. Com suas habituais “panorâmicas geográficas” ou “descritivas”, que dão uma noção precisa do cenário até chegar ao objeto cênico desejado, Buñuel acompanha Viridiana e a madre superiora conversarem sobre sua ida à casa de D. Jaime (Fernando Rey). Num primeiro momento estamos diante de uma jovem devota que vê em suas penitências e privações um modo de se apartar do mal.
Em Viridiana, os desejos são sublimados em atitudes “castas”: o tio toca o Réquiem de Mozart enquanto anseia pela sobrinha, a empregada se dedica com afinco ao seu trabalho e age com grande indiferença a tudo ao seu redor enquanto anseia pelo patrão, e Viridiana deposita em sua fé os seus desejos.
Após a partida da sobrinha, D. Jaime se enforca em uma corda de punhos em formato peniano, a mesma corda que a filha da empregada saltava, sob os olhares prazerosos do velho. Castigada pela culpa, Viridiana investe na caridade e devoção o que resta de sua abalada fé. Seu primo Jorge, que divide com ela a grande casa herdada do pai, é o contraponto dessa segunda parte do filme. Não só a libido aflorada é trazida pelo herdeiro, mas também a mentalidade do burguês empreendedor, que imediatamente passa a fazer reformas na casa e arquitetar planos de expansões e construções nos arredores. Uma trindade central nada santa toma a frente da narrativa: Jorge, os mendigos, e Viridiana com sua fé em crise.
Buñuel faz com que as histórias se entrelacem e caminhem juntas sem perder suas particularidades, resultado de um roteiro e direção impecáveis. A quebra desse fluxo interno harmonioso acontece quando os mendigos são deixados sozinhos na casa. Sem os “patrões”, os miseráveis resolvem fazer um banquete, onde reproduzem A Última Ceia de Leonardo Da Vinci, ceia na qual um dos mendigos, travestido de noiva, dança o Aleluia de Handel, e onde há estupro, destruição de objetos da casa, e tentativas de assassinato.
Se a profana ceia dos mendigos foi o estopim para Viridiana considerar seus feitos caridosos e sua fé, o fato não é o único causador dessa revisão de valores, tendo alguns pequenos sinais se apresentado desde os primeiros dias de sua chegada à propriedade. Destaquemos pelo menos um importante fator: a curiosidade gerada pelas observações de Jorge, ou o orgulho feminino de Viridiana, ferido pelo primo considerá-la incapaz de entender suas alusões “mundanas”.
A ex-noviça começa (ou termina) a sua jornada, ouvindo jazz e jogando cartas com Jorge e a empregada da casa, com quem ele mantinha um caso. A câmera abandona o “trio pecador” afastando-se lenta e dramaticamente e pondo-se à distância, como que envergonhada. O desejo alcança a sua vitória ao fim da fita, e na mesa de jazz, cartas e sexo, cada ponta do triângulo tem uma vontade oculta a realizar. Uma frase do Werther de Goethe pode ser adaptada à irônica cena: “Estou só, e neste lugar, produzido expressamente para habitação de almas como a minha, a vida parece-me deliciosa”.
* Leia a segunda parte da Trilogia da Desvirtude.
VIRIDIANA (Espanha, México, 1961)
Direção: Luis Buñuel
Elenco principal: Silvia Pinal, Francisco Rabal, Fernando Rey, José Calvo, Margarita Locano, José Manuel Martin, Victoria Zinny, Luis Heredia, Joaquin Roa, Lola Gaos, Maria Isbert, Teresa Rabal.