7 de jul. de 2010

Chove Sobre Nosso Amor



por Luiz Santiago


   Em uma noite chuvosa, a jovem Maggi conhece o ex-presidiário David em uma estação de trem.

   Maggi foge de seus demônios pessoais e de uma vida de dificuldades, grávida de um bebê que ela não sabe quem é o pai. David tenta começar uma nova vida depois de ter sido preso diversas vezes.

   Ambos viverão uma história de amor quase noir, no segundo filme de Ingmar Bergman, Chove sobre nosso amor (1946), uma adaptação da peça teatral Brava Gente, de Oskar Braathen. Diferente de Crise (também baseado em uma peça de teatro), o roteiro de Chove sobre nosso amor foi escrito por Herbert Grevenius, tendo uma única sequência sido escrita por Bergman, a do julgamento no final do filme.


   Chove sobre nosso amor reflete elementos da sociedade do pós-guerra que vão desde o campo econômico ao campo ideológico. Uma forte presença noir (e um estilo narrativo – mas não formal – muito próximo ao de Michael Curtiz) permeia o filme. Além disso, é visível a busca de Bergman para encontrar um estilo pessoal. Nessa primeira fase de sua carreira, assimilar e “reinventar” suas influências será uma espécie de meta muda, cujo ápice, talvez, seja Porto (1948), obra de fortíssimo caráter rosselliniano, e o fim dessa fase, é, certamente, Juventude (1951), filme onde é possível identificar um produto genuinamente bergmaniano, em todos os sentidos.

   Assim como em CriseChove sobre nosso amor tem um narrador, mas desta feita ele aparece, e fala com o espectador, quebrando a diegese fílmica. Para complementar a forma narrativa, há alguns intertítulos que servem como “atos” ou “capítulos” para o filme. De fato, o roteiro abrange uma tamanha quantidade de coisas que a passagem de um tema para outro, em alguns momentos, incomoda, por destoar da atmosfera corrente, por isso a divisão em capítulos se fez necessária.


   No decorrer do filme, o espectador irá lidar com dois momentos cênico-narrativos opostos: um de lentidão interna, e outro de enorme agilidade – a cena do julgamento. Ainda no campo narrativo, vale citar o caráter “divino” do narrador, que aparecer diversas vezes na história. Essa onipresença da personagem faz um diálogo de cumplicidade com espectador, o único que sabe um pouco mais sobre a verdadeira identidade daquele que é denominado “anjo” ao fim do filme.

   Além da influência noir, é impossível não vermos elementos neo-realistas em Chove sobre nosso amor, a começar pela classe e condição social dos protagonistas e da maioria das pessoas que os rodeiam. A luta entre as classes se dará em diversos momentos do filme, especialmente entre os que possuem coisas (o lote de terra, o emprego) e os que dependem deles. As personagens passam por humilhações morais motivadas por sua condição social e com base em sua vida pregressa ou nas atitudes “ilegais” cometidas no momento corrente da película.


   O discurso moral da burguesia, sua burocracia e hipocrisia, é visto a partir da chegada do funcionário público (interpretado pelo excelente Gunnar Björnstrand, em sua primeira parceria com Bergman), que tem a ordem de despejo para o casal Maggi e David, já que estão em um terreno proibido. O que será revelado posteriormente, é que a casa em que mora o casal, alugada de um fazendeiro da região, é uma casa pré-fabricada, móvel, que o tal fazendeiro carrega para diferentes lugares, aplicando golpes de falso aluguel, cobrando taxas e até incriminando os moradores. A grande ironia é que os indiciados serão David e Maggi, por uma série de “crimes”. Na sequência do tribunal, Bergman preencheu de moral para depois ridicularizar o discurso do Promotor contra o casal protagonista, que começa assim:


Temos diante de nós dois jovens, que tiveram oportunidades de buscar um meio de vida certo de certo modo miserável, mas respeitável. Uma posição simples, mas honesta, em nossa sociedade sueca. Mas eles não quiseram isso! Com aguda carência de ideais, insensibilidade e indiferença às leis mais básicas da vida e da sociedade eles tem nadado com a corrente, como criaturas marinhas guiadas por seus extintos mais vis, suas necessidades mais primitivas, sem pensar em construir uma vida para si próprios.



   Segue então o inflamado discurso, pedindo ao júri que “salve a sociedade deles e salve eles deles mesmos”. Quando o advogado de defesa substituto (o narrador onipresente) começa sua defesa, tudo o que o promotor e as testemunhas de acusação afirmaram passa a ser visto através do seu viés dialético. Nada é negado, mas o júri é chamado a olhar para si mesmo naquelas mesmas condições. Assim como Hannah Arendt, Bergman coloca em cheque o poder de quem julga e a responsabilidade e validade do julgamento (como também fizera Brecht, no teatro). A defesa dos que estão à margem da sociedade não é feita através da negação de atos como o arrombamento de casas e o aborto, mas sim pelas condições sociais que cercam esses indivíduos, e pelo caráter particular de cada atitude.



   O amor entre os dois jovens não é menos complicado que sua relação social com o mundo. A adaptação de ambos a hábitos “de uma nova vida” é dolorida e causa algumas feridas durante o processo. Maggi e David são duas almas massacradas pela penúria e pela vida, mas que encontram no amor a força para empreenderem uma luta e buscar uma realidade diferente, embora ainda carreguem marcas do passado.

   A chuva e um cão acompanham o casal durante todo o filme. A fecundidade trazida pela chuva (que faz nascer o casal, que só se encontra na estação de trem por causa da chuva) é acompanhada pelo guia nefasto, um poodle preto que inclusive é adotado pelos protagonistas. A figura familiar ou vigilante do cão integra-se à sua função mítica, a de psicopompo (ou seja, guia o homem na noite da morte após ter sido seu companheiro no dia da vida.¹ De fato, o cão aparece na noite chuvosa, logo após o casal quase ter sido atropelado por um trem, e Maggie torcer o tornozelo. A morte ou a catástrofe ronda o casal.


   A fotografia noir/expressionista de Göran Strindberg e Hilding Bladh, com alguns criativos movimentos de câmera, compõem a aura sombria do filme. Apesar disso, a figura dos mascates e da entregadora de jornais são os contrapontos cômicos da película, sempre acompanhados de música circense, inclusive em uma fantasiosa situação na sequência final. O filme ainda conta com obras musicais de Wagner e Flies, muito bem escolhidas pelo diretor musical Erland von Kock, parceiro habitual nos primeiros filmes de Bergman. Os atores são incríveis. Diferente de Crise, onde a direção do cineasta parece não surtir efeito nos atores, Chove sobre nosso amor já traz ótimas atuações, uma característica cada vez mais aprimorada pelo cineasta, a partir de então.

   A cena final da obra é pitoresca: embora juntos e felizes, o casal protagonista não tem dinheiro, nem casa, nem para onde ir. Estão parados em uma encruzilhada, onde ganham um guarda-chuva de um homem que passa numa bicicleta (o narrador onipresente). De braços dados sobre a chuva, Maggi e David seguem seu caminho em busca de uma oportunidade, esperançosos do sucesso de uma nova tentativa. Nada mudou desde a primeira cena, a não ser o fato de estarem juntos. Aos olhos da igreja, estão em pecado, por não serem casados. Aos olhos da sociedade, são marginais, vagabundos. Apenas a fecunda chuva que cai sobre o par promete alguma prosperidade e esperança a esse amor à margem.


CHOVE SOBRE NOSSO AMOR (Det Regnar på vår Kärlek, Suécia, 1946).
Direção: Ingmar Bergman
Elenco principal: Barbro Kollberg, Birger Malmsten, Gösta Cederlund, Ludde Gentzel, Douglas Hage, Benkt-Ake Benktisson, Sture Ericsson, Ulf Johansson, Gunnar Björnstrand, Ake Fridell.

FILME BOM. RECOMENDAMOS ASSISTIR.

1 - CÃO

     Não há, sem dúvida, mitologia alguma que não tenha associado o Cão – Anúbis, T'ian k'uan, Cérbero, Xolotl, Garm, etc. - à morte, aos infernos, ao mundo subterrâneo, aos impérios invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selênicas. À primeira vista, portanto, o símbolo bastante complexo do cão está ligado à trilogia dos elementos terra – água – lua, dos quais se conhece a significação o culta, femeal, ao mesmo tempo que é vegetativa, sexual, divinatória e funadamental, tanto no que concerne ao conceito de inconsciente, quanto ao subconsciente.

     A primeira função mítica do cão, universalmente atestada, é a de psicopompo, i.e., guia o homem na noite da morte após ter sido seu companheiro no dia da vida. De Anúbis a Cérbero, passando por Thot, Hécate e Hermes, ele emprestou seu rosto a todos os grandes guias de almas, em todos os escalões de nossa história cultural ocidental. Mas existem cães no universo inteiro, e em todas as culturas eles reaparecem como variantes que não fazem senão enriquecer esse simbolismo fundamental.

[…]

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos.

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