por Luiz Santiago
Se Um Barco Para a Índia (1947), de Ingmar Bergman, fosse um filme mudo, os versos de Dois Fragmentos de Odes, de Álvaro de Campos, poderiam compor seus intertítulos de abertura, pois a obra de Bergman é a transformação em imagem do que escreveu o poeta português:
[…]
Vem lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
[…]
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
[…]
Um Barco Para a Índia é o terceiro filme do cineasta sueco, que o adaptou da peça homônima de Martin Söderhjelm.
A história central tem o trio Alexander, Johannes (pai e filho), e Sally, uma cantora de cabaré. Cercam-nos os outros marinheiros do barco de salvamento e a subserviente esposa do capitão Alexander e mãe do Imediato Johannes. A terrível relação entre pai e filho, já contida na peça, é intensificada no roteiro de Bergman, a ponto de o pai tentar matar o filho asfixiado, em um mergulho. A luta entre as gerações ganha uma outra dimensão após a chegada de Sally, que praticamente “salva” Johannes do julgo paterno, ao passo que os dois jovens começam a se apaixonar. Conforme o filho ganha coragem para desafiar o pai e tomar as suas próprias decisões, o velho genitor tem os dias de sua visão contados: em um ano, ele estará completamente cego. Um amargo desespero toma conta de Alexander, e seu crescente ódio pelo filho, é na verdade o ódio pela juventude, pelo vigor que pode proporcionar experiências diversas, especialmente para os marinheiros. Pouco tempo depois de conhecer Sally, Alexander lhe conta, desalentado, sua enfermidade, e então conclui:
_ A pior coisa não é ficar cego. […] É nunca ter visto nada.
Na sequência de abertura do filme vemos um navio solitário no mar. O céu anuncia uma tempestade noturna. Em uma elipse de dias, vemos Johannes descer fardado pela escada de um navio, e entrar numa pequena cidade portuária. Ele procura por Sally, e quando a encontra, fica espantado com o seu estado decadente. Em uma outra elipse, vemos Johannes numa praia da mesma cidade. Ele caminha a esmo, e se deita na areia rodeada por uma baixa vegetação costeira quando se obriga a lembrar o que aconteceu antes, o que o levou até ali. Esse flashback será o corpo do filme.
A primeira vez que Johannes aparece em seu flashback, é meio escondido, ouvindo os outros marinheiros falarem mal de seu pai e de si. É visível que a personagem tem medo, e para confirmar esse temor que paira (fortalecido pela música dramática de Erland von Kock), Bergman faz inúmeras tomadas “através de” alguma coisa, como se a câmera precisasse se esconder para captar o que se passa. Além do medo, Johannes tem um forte complexo de inferioridade por ser corcunda. Em um momento de explosão emocional e estranhamente libidinosa, bêbado, ele obriga Sally a dizer que ele é uma aberração. Descobrimos que é por esse motivo que o pai o menospreza e o odeia. A mãe também manisfesta o seu sentimento de rancor, relembrando que até o nascimento de Johannes, ela tinha uma vida feliz ao lado de Alexander.
Bergman estrutura a forma do filme em dois espaços específicos: o externo sempre alegre – o espaço de fuga; e o interno claustrofóbico do barco onde moram os protagonistas – palco das coisas ruins. Nesses dois espaços, a mise-en-scène tem o ódio como motor-guia, e todo o filme é o resultado da construção, do perdão ou da consequência do ódio, plasmados como que por olhos marejados, pela bela fotografia de Göran Strindberg (de Música na Noite e Prisão, ambos de 1948).
Em Um Barco Para a Índia, encontramos três grandes motivos recorrentes na futura filmografia do diretor: o teatro de variedades (apresentação de números musicais no cabaré e apresentação de fantoches); a praia e seus arredores, filmados em parte com a câmera baixa, à Ozu; e cenas de “surtos” das personagens. As tomadas da praia possuem uma beleza idílica, e são fotografadas com uma precisão quase irreal, com uma iluminação incrível e muito bem modulada em suas nuances. Os ousados ângulos empregados desenham um filme arquitetônico, e há momentos em que a montagem de Tage Holmberg (que volta a trabalhar com Bergman em Mônica e o Desejo, 1953) constrói, com a forma interna, uma prisão em torno das personagens. O uso e a construção imagética de uma arquitetura ganha então significado simbólico, narrativo e metafórico. As duas sequências no moinho são de uma poesia tremenda, e triste, vale dizer, e revelam tanto uma equipe muito preparada, quanto um jovem diretor extremamente escrupuloso.
Em meio a tanta adversidade, Johannes consegue se sagrar marinheiro e endireitar a postura. O re-encontro com Sally não era o que ele esperava, mas assim como ela teve um papel importante para sua libertação, ele se sente no dever de insistir em levá-la em sua nova viagem, tirar a mulher que ele ama da depressão causada pelo amor reprimido e impossível, até então.
Na sequência final, vemos apenas as gaivotas no céu, e o navio ganhando velocidade. O lugar para onde o casal parte conserva não só a felicidade que tanto buscam, mas uma cenário-fuga distante, quando os lugares conhecidos por eles não satisfaziam mais. O Oriente é um mundo, o símbolo do futuro imaginado feliz. Para o casal, se torna real o verso do vate aqui já citado: “A lua começa a ser real”. O ódio se desintegra e some, o casal parte feliz, mas o espectador fica com uma incômoda incerteza ao ver se afastar aquele barco para a Índia.
UM BARCO PARA A ÍNDIA (Skepp Till India Land, Suécia, 1947).
Direção: Ingmar Bergman
Elenco: Holger Löwenadler, Anna Lindahl, Birger Malmsten, Gertrud Fridh, Naemi Briese, Hjördis Petterson, Lasse Krantz, Jan Molander, Erik Hell, Ake Fridell.
FILME BOM. RECOMENDAMOS ASSISTIR.