7 de dez. de 2011

Moloch (1999)



por Marcio Sallem


          Moloch, segundo textos bíblicos, é o nome de uma divindade à qual os amonitas sacrificavam os seus recém-nascidos consumidos no fogo. Tradicionalmente associado a uma figura demoníaca, o cineasta russo Alexander Sokurov, em 1999, inauguraria a sua aclamada tetralogia do poder associando aquela entidade à figura do Führer Adolf Hitler, um paralelo deveras óbvio – e basta observar o destino de adoráveis filhotinhos caninos –, mas que assume contornos cômicos e prosaicos desmistificando o ditador detrás do infame bigode, esforço que Charles Chaplin havia perpetuado em O Grande Ditador. A sustentação da análise de Sokurov reside, primariamente, no relacionamento conturbado do ditador e sua esposa Eva Braun e da cúpula do poder encerrada por Josef Goebbels e Martin Bormann.

          Bailarina, Eva é apresentada em um longo plano nas varandas do castelo na Bavária, onde a cúpula nazista reunía-se para um final de semana sem discussões políticas. Trajando um vestido cor da pele, ao som de bombas e observada pelos binóculos voyeur de soldados alemães, Eva transmite a abnegação da vida pretérita na divertida e despreocupada dança, momento o qual será determinante quando Hitler afirmar que “as mulheres dos homens poderosos eram estúpidas e mais expressivas por causa disso”, exemplificando na figura de Constanze, esposa de Mozart.


          A única, dentre todos, a costumeiramente questionar Hitler, chamado pelo carinhoso apelido de Adi, Eva é o contrapeso da balança de poder do ditador. O que, eventualmente, não afasta a sua gigantesca ambição e maldade, trazida à tona no detidamente cruel diálogo com um padre, ou na comparação visual dele com um maestro insano e enfurecido. Cercado por homens de confiança quase como formigas ao redor de um pedaço de doce, o Hitler de Sokurov é frágil e mentalmente instável, capaz de um comportamento vexatório e patético, ordeiramente realçado pelas roupas íntimas ou por ações banais, como a defecação em um passeio nas montanhas.


          Germófobo, avesso a odores intensos e referindo-se ao suor como “a água que saí do corpo”, Hitler é hipocondríaco, histérico e antipático nas conversas grosseiras e rudes na mesa de jantar. Características que não diminuem a adoração do fiel secto que parece implorar por um momento de atenção, um carinho ou sorriso do Führer. Ao menos tempo, Sokurov também frisa, pretensiosamente, o desconhecimento de Hitler dos massacres ocorridos em Auschwitz, cujo nome sequer é capaz de lhe provocar alguma reação. Gobbels e Bormann, por sua vez, trajam as caricaturas esperadas daquelas figuras, respectivamente, o tamanho reduzido e o comportamento bárbaro e glutão; Magda, esposa de Gobbels, permite-se um olhar criterioso quando reunida com Eva. Aliás, nesse sentido, as figuras femininas desempenham um papel mais interessante do que as masculinas, que são previsíveis, trogloditas disfarçados de ditadores, cineastas e generais.


          Aproveitando o discurso de poder da Alemanha nazista, Sokurov aproveita para opinar na dissolução da União Soviética em 1991 e formação do Estado russo. Desejando dar “espaço para os novos”, Hitler sugere a sucessão no poder, e ironicamente estimular o desencadeamento de novos regimes, novas ideias, novas mentalidades. A introdução de revistas ocidentais, presentes de Magda a Eva, justifica a invasão dos tentáculos capitalistas no regime comunista soviético e, se considerarmos o contexto da Guerra Fria, anos antes, apenas temos um panorama histórico cristalino sobre o surgimento da Rússia.

          Aliás, criticar Stalin, exercício curioso realizado por Hitler ao descobrir a construção de um palácio maior que aqueles na Alemanha, e observar a propaganda nazista ilustrando a chegada de tanques a União Soviética e a derrota de bolcheviques funcionam como menções de Sokurov ao curioso momento histórico vivido naquele país. E é engraçado como a arrogância de Hitler ganha ecos irônicos na iminente derrota que viria a sofrer naquele conglomerado comunista.

          Mas, essencialmente Moloch é um duelo de poder sem política. A queda de braços ideológica de um perturbado ditador e sua esposa. Um jogo de contrastes da imagem austera de Hitler nos quadros nazistas e aquela a olhos vistos. Paradoxos reproduzidos na estátua de duas faces, e uma única cabeça, capaz de enxergar frente e costa, passado e futuro. O banal e ordinário misturados com o genocídio, a tortura e a dor de milhões de vidas perdidas no nazismo. Uma criatura monstruosa reduzida a uma caricatura branda e inofensiva, pueril. Curiosamente, a maior qualidade do projeto.


          Tecnicamente hipnotizante, Sokurov aproveita-se dos seus tradicionais quadros abertos em uma composição rica em significados, como àquela que encerra um olhar disparado para a direção contrária dos demais ao redor de Hitler, ou a mise-en-scène que diminui Hitler em relação aos demais, humilhando-o, de certa maneira, exageradamente. Os establishing shots do castelo traduzindo a sua dimensão mítica, acentuada pela fotografia etérea e a paisagens sobre as nuvens.

          Eis Sokurov, começando o que viria a terminar 12 anos depois com o lançamento de Fausto. Uma obra competente em transformar o poder em fonte de loucura, discórdias, traições e, vejam que sarcasmo, humor e sátira.


* Esse texto faz parte do Especial cinema russo: 20 anos sem socialismo.


* Marcio Sallem é editor do Cinema com Crítica e convidado especial do Cinebulição para o Especial Cinema Russo. 

MOLOCH (Rússia, Alemanha, Japão, Itália, França, 1999).
Direção: Aleksandr Sokúrov
Elenco: Yelena Rufanova, Leonid Mozgovoy, Leonid Sokol, Yelena Spíridonova, Vladimir Bogdanov, Anatoli Shverdesky, Natalya Nikulenko, Rasina Tsydalko.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

Twitter Delicious Digg Stumbleupon Favorites More

 
Powered by Blogger