8 de nov. de 2010

O cinema nacionalista de Humberto Mauro



por Luiz Santiago:

Casas entre bananeiras.
mulheres entre laranjeiras.
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Êta vida besta, meu Deus.

Carlos Drummond de Andrade


     Sabe-se que o cinema brasileiro funcionou em ciclos, a partir da vitória das fitas hollywoodianas sobre as produções nacionais em meados dos anos 10. A era de ouro do cinema brasileiro (1896 – 1914), com seus filmes “criminais” e “cantantes”, foi interrompida pela enxurrada de ficções dos estúdios estadunidenses, resultando em uma crise das produções nacionais.

     Nos anos 20 e 30, os Ciclos Regionais foram fontes de boas produções de nosso cinema. Em diversas cidades do país (Campinas, Cataguases, Recife), realizadores pioneiros produziram filmes de valor inestimável para a história de nossa sétima arte. Infelizmente, parte dessas obras perdeu-se em incêndios ou foram deterioradas pela má conservação durante os anos. Desses ciclos regionais, o de Cataguases é hoje lembrado pelo seu principal representante, o mais nacionalista de todos os cineastas brasileiros, o mineiro Humberto Mauro.





Brasa Dormida, 1928 - Humberto Mauro.


     O cineasta realizou cinco filmes durante o Ciclo de Cataguases, três filmes na Cinédia de Adhemar Gonzaga (dentre eles, sua obra mais conhecida: Ganga Bruta, 1933), dois filmes com a atriz e produtora Carmen Santos (Favella dos meus amores (1935), sua maior bilheteria; e Cidade mulher, 1936), além de obras memoráveis no cinema nacional, realizadas em momentos diversos de nossa história: O descobrimento do Brasil (1937), Argila (1942), Canto da saudade (1952; filmado no estúdio Rancho Alegre, criado pelo próprio Humberto Mauro) e Carro de bois (1974), seu último filme.

     Em 1936, um ano antes do golpe varguista do Estado Novo, o Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, criou o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), entregando a direção do novo órgão ao antropólogo Edgard Roquette-Pinto (que ficaria no cargo até 1947). Neste mesmo ano, o diretor Humberto Mauro foi convidado para fazer parte do Instituto, a fim de produzir obras de “orientação educacional”. Com sua liberdade criativa assegurada por Roquette-Pinto, Mauro dava início a sua longa permanência no INCE (1936 – 1967), período em que dirigiria 357 filmes, todos de caráter nacionalista – dentro das propostas do órgão do governo.

 

     Uma das séries e sequências que Mauro dirigiu para o INCE foi a Brasilianas (uma alusão às Bachianas de Villa Lobos, também funcionário do INCE – consultor musical), onde propunha um olhar para o cotidiano campesino, com uma ponta de nostalgia e inocência. Esses curtas-metragens trazem canções populares como trilha sonora, e a imagem é a representação da situação criada pela música ou pelo poema musicado, como é o caso das duas obras que escolhi aqui: Meus oito anos (1956) e A velha a fiar (1964). Antes, porém, de dedicarmos algumas linhas aos filmes, vale fazer uma breve abordagem analítica sobre o cinema de Humberto Mauro.

     Verdade seja dita: é o caráter escrupulosamente fotográfico de Humberto Mauro que chama a atenção do espectador. No decorrer dos anos, sua câmera tornou-se uma observadora onipresente da topografia interiorana, dos espaços menores dos sítios e fazendas, das casas e do trabalho no campo. Os filmes do diretor feitos para o INCE possuem essa característica de louvor ao espaço campestre, da relação do homem com a natureza que está em toda parte, e que torna tudo mais humano – em oposição, por exemplo, ao concreto da cidade e seu ritmo frenético, que corrompe o homem, como podemos ver em Lábios sem beijos (1931).





Lábios sem Beijos, 1931 - Humberto Mauro.


     As imagens-fotograma dos filmes de Humberto Mauro demonstram a estática do mundo retratado, quase uma confirmação da “vida besta” que Drummond lamentara em seu poema Cidadezinha qualquer. Mas nesses filmes, a vida no campo é um idílio quase utópico, um resgate ou um clamor à raiz sertaneja que se perdera entre os motores e cofres das capitais. Afirmo isso, porque os “filmes educativos” de Mauro para o INCE, são produtos de um Brasil que já primava pela máquina e que adentrava à sua era desenvolvimentista. Entretanto, mesmo antes de 1956 (ano da posse de JK, o presidente do desenvolvimentismo), a vida no campo já deixara de ser o lugar ideal, uma Pasárgada almejada. O populismo de Vargas (1930 – 1945), a regular continuidade dada por Dutra (1946 – 1950), e o segundo governo Vargas, ápice de sua política industrial no país (1951 – 1954), demonstram que o Brasil via nas grandes cidades a alternativa do sucesso, o lugar ideal para a felicidade e a riqueza. Não é à toa que as chanchadas dos anos 50 explorarão o mundo citadino como alternativa concreta de sucesso. Em boa parte dessas comédias carnavalescas (bem como nos filmes de Amâncio Mazzaropi, também surgidos no início dos anos 50), a cidade é a saída e o desejo do morador interiorano.





Humberto Mauro em Engenhos e Usinas, 1955.


     Na concepção ideológica, Humberto Mauro é a voz dissonante de um Brasil selvagem; na estética, é a exatidão do ângulo, a beleza da montagem e virtuosa constituição dos planos. A forma interna dos filmes do cineasta mineiro lembra certas películas de William Wyler e John Ford, tanto em sua obra-prima, Ganga Bruta (um dos melhores filmes de todos os tempos, não só do cinema brasileiro), como também no primoroso Engenhos e Usinas (1955).

     Se Limite (1930), de Mario Peixoto, alcançou popularidade impensável – como um legítimo filho das vanguardas europeias –, toda a filmografia de Humberto Mauro se ressentiria da minguada popularidade, apesar de se tratar de produtos fílmicos de qualidade tão boa quanto a do lendário filme de Peixoto. Entre a estética manipuladora e realista de Robert Flaherty, e a negação do “espetáculo de estúdio” de Jean Vigo, Humberto Mauro dirigiu filmes – fora e dentro do INCE – que abordavam a vida em seus mais variados momentos, explorando todo o espaço disponível para a lente da câmera, e tecendo o fio da permanência daquela história ou daquela cena específica tanto tempo quanto necessário para que o espectador fosse tocado pela realidade mostrada, embora não fosse exatamente a sua. Nesse “tecer a vida” como um fio durável na tela, até que se torne marcante para quem o vê, o curta-metragem A velha a fiar se impõe como o grande representante oficial.

A velha a fiar, 1964 - Humberto Mauro

     O filme tem uma montagem operística, com abertura quase didática antes do tema principal. A câmera do diretor de fotografia José A. Mauro apresenta cada um dos elementos que futuramente entrarão em ação, enquanto a velha fia ininterruptamente em sua roca. A canção popular, interpretada pelo Trio Irakitã, ganha um significado muito além da simples cadeia de vida que “faz mal” aos outros, em sua con-vivência.

     Na abertura da obra, uma melodia clássica em allegro apresenta o espaço cênico ao espectador, que chega como um convidado, entrando pela porteira da propriedade. Os planos seguintes mostram-nos a vida de trabalho dos homens e mulheres do sítio e a languidez dos animais: uma gata amamentando um filhote, um rato correndo ao redor de uma saca de trigo, uma aranha tecendo sua teia, etc.. Quando duas personagens, em perfeita sincronia, saem do campo de visão da câmera, um corte nos leva para a sala de uma casa, onde uma velha fia imperturbável. A música que se segue, faz-nos entender a velha como uma das Moiras gregas (que tecem, alongam e cortam o fio da vida). 

     Se tudo o que vimos na abertura do curta parecia imóvel demais, agora todos os elementos ganham vida, e passam a interferir na existência do outro, sempre voltando à velha, aquela que tece o tempo e possibilita toda a cadeia de acontecimentos.





As Moiras Gregas, 1885 - Struduick


     Conforme a música avança, a velocidade da montagem é acelerada, e a quantidade de ângulos usados por Mauro, para dar conta do mesmo espaço diversas vezes, fazendo-os parecer inédito, tem um dinâmico sucesso visual. A velha, por exemplo, aparece em duas sombras diferentes, e é filmada em plongé e contra-plongé, na diagonal, em plano geral, médio, primeiro e primeiríssimo planos, além de ser apresentada em zoom, pela primeira vez. Além disso, o uso de imagens estáticas e animação, se adequa muito bem à impressão documental obtida no início da obra. É como se a quebra de gênero não existisse: o espectador aceita os cartoons como parte necessária e real do todo – tal a noção específica de Humberto Mauro sobre onde colocar cada pedaço de fotograma.

     O uso do som, ao mesmo tempo em que se pretende realista (como a representação do miar do gato, o mugido do boi ou o correr da água), aparece como artificial, já que é produzido em estúdio. Entretanto, a veia de humor que esses sons ressaltam, apaga toda a noção de artificialidade, integrando-se de forma acusmática e precisa às cenas, salientando o já citado caráter operístico e de quebra de gênero.

Meus oito anos, 1956 - Humberto Mauro.

     Percebe-se, portanto, que A velha a fiar é um curta-metragem múltiplo de posições estéticas, ritmos, e significados, mas que não perde nada de sua característica infantil.

     Esse mundo da infância ou o sentido ingênuo e pueril das coisas é elevado às alturas por Humberto Mauro na sua adaptação do poema de Casimiro de Abreu, no nostálgico e muito emocionante Meus oito anos. Tão polissêmico quanto A velha a fiarMeus oito anos traz à lembrança não só a vida em um país que não tinha o relógio e a agenda como indispensáveis, mas de um homem que, ao olhar a cidade onde nasceu e cresceu, tem um encontro consigo mesmo, e não se contém de emoção ao lembrar do que era, e ver o que se tornou.

     O uso do raccord e do chicote servem para aprimorar a continuidade visual e apresentar o flashback ao espectador. Mas aí reside o erro de Mauro, nesse filme – algo que, por “armadilha de roteiro”, acaba se repetindo em curtas da época, cuja música de acompanhamento apresenta situações muito repetitivas e pouco dinâmicas (Casinha pequenina, por exemplo), ou mais difíceis de ser transmitidas para a tela em pouco tempo ou com a tecnologia da época (Chuá, chuá, por exemplo): o uso repetitivo do chicote (a câmera deslocada em super-velocidade em certa direção, deixando a cena fora de foco, e ligando-se imediatamente a outra cena), incomoda o espectador e artificializa demais o filme, que ainda tem o demérito de “dar a entender” que vai acabar, diversas vezes, mas não acaba. É claro que a direção de Mauro não está estritamente ligada a esse problema de continuidade musical, mas o produto por ele assinado, sofre as conseqüências da composição. Mas vale dizer que os problemas técnicos do curta não estragam sua força emotiva nem sua beleza estética e fotográfica (novamente assinada por José A. Mauro).

     O mundo infantil do menino é representado com belas imagens de brincadeiras e paisagens, um deleite para os olhos de quem, pelo menos um período na infância, passou no campo uma temporada. A “volta para a realidade” é o momento em que o espectador se dá conta de que aquela “neve d’antanho” derretera-se há muito, e então, o propósito emotivo do filme encontra fértil o campo para se fixar.

Humberto Mauro
     O Brasil de Humberto Mauro ainda vive na alma de umas poucas pessoas, e em recônditos lugares pelo nosso imenso território – vide o farsesco documentário Terra deu, terra come

     A realidade desse “Brasil selvagem” tão maureano é repleta de uma cultura intocada, livre de estrangeirismos de isopor e criações genéricas. Hoje, em pleno andar renovado de nosso cinema, penso ser oportuno o olhar para as nossas raízes cinematográficas. Ali se encontram esses ingredientes tão brasileiros que compõem nossas películas e as tornam particulares no cenário latinoamericano, e porque não dizer, mundial.

     Sem ser um Policarpo Quaresma, mas com um triste fim, Humberto Mauro ainda passa despercebido pelos olhares de muitos estudiosos e do (relativamente pequeno) público que aprecia o cinema nacional. Infelizmente, há quem prefira a facilidade do happy ending e o formato HD, a entender quando, onde e como, o cinema brasilis tornou-se o que é hoje. É uma pena.

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