INTERTEXTUALIDADE PARODÍSTICA COMO ARGUMENTO FÍLMICO EM “A ÚLTIMA NOITE DE BÓRIS GRUSHENKO”, DE WOODY ALLEN.
por Luís Adriano de Lima
Estudante de Letras e editor do blog Literatura e Cinema.
Introdução
O cinema é, sobretudo, um elemento com função social. Pode-se considerá-lo meramente artístico, pode-se considerá-lo uma expansão da literatura – e exatamente por esses fatores que se justifica a sua existência como motivo social. Os filmes são capazes de, numa estrutura linear, nos passar um questionamento desautomatizador; numa estrutura pós-moderna, ele obriga a encaixar os elementos e organizá-los em seus momentos determinados – um exercício para a mente, pois; algumas vezes, eles buscam apenas entreter, proporcionar um momento em que o espectador possa sair de seu mundo particular e assistir a um outro universo, onde as coisas acontecem mais fáceis ou onde elas são deveras complicadas. A arte está incrustada nessa linguagem visual, o efeito estético das obras cinematográficas é visível a todo o momento, principalmente pelo fato de estar inserida em uma sociedade extremamente midiática.
Ao analisar uma arte viva como o cinema, não se pode esquecer sua transmutabilidade, afinal, desde que nasceu, a estrutura cinematográfica vem se modificando em todos os seus aspectos: o modo de se filmar se transformou, os enquadramentos teatrais presentes em alguns filmes deram espaço ao fechamento angular que foca apenas uma parte do todo, o moralismo de uma época cedeu a pseudoliberdade cênica de outra época (vale apontar que ainda hoje as pessoas se chocam com sexo e nudez, por exemplo), os assuntos, antes tratadosmais pacificamente, ganharam tons mais pungentes, que chocam a sociedade atual. Ainda que se tenha utilizado aqui o termo “modificar”, ele não é a palavra que melhor registra o real processo das artes, porque elas, na verdade, se reinventam, funcionam sempre num processo de retroalimentação: o elemento primeiro é reconfigurado e se torna no elemento segundo, que, por sua vez, vira o terceiro e assim sucessivamente, até que ao aparente último elemento são acrescentadas características do primeiro elemento da série e ele, o último, então, se torna algo novo. A linguagem das artes – pintura, literatura, cinema, música etc. – é, portanto, cíclica.
Essa introdução feita serve como base para o que adiante será afirmado. Lavoisier sintetizou as artes – assim como deu uma regra ao universo – ao dizer que tudo na natureza é transformado. Talvez o aspecto em que mais se perceba a transformação seja o “assunto”, pois ao se conferir obras da década 1950 e outras da década passada, percebe-se facilmente que a temática é abordada de modo bastante diferente. Ao se comparar dois romances – Tarde Demais para Esquecer e As Pontes de Madison, por exemplo – perceber-se-ão notáveis diferenças entre eles, ainda que a essência da trama seja basicamente a mesma: o encontro inesperado entre dois personagens que se descobrem apaixonados intensamente um pelo outro e que não podem viver esse amor sem que, para isso, precisem abrir mão de suas vidas anteriores ao momento do encontro. Assim, torna-se incontestável que “[...] o discurso, seja qual for, nunca é totalmente autônomo. Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso é falado [...] por muitas vozes, geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço” (BLIKSTEIN, 1994: 45).
Análise da obra
Era inevitável essa breve explicação antes de um aprofundamento maior nessa obra de Woody Allen, datada de 1975 e intitulada originalmente Love and Death. Indubitavelmente, o diretor norte-americano – que tem garantido ao cinema bons filmes desde seu debute cinematográfico – fez uma seleção muito específica de outras obras, as quais direta ou indiretamente entrariam para o roteiro desse filme, que retrata a vida de Boris Grushenko, um russo que foi aprisionado e condenado à morte pelos franceses num período de guerras napoleônicas. A partir de então, na última noite de Boris, ele próprio conta a trajetória de sua vida, desde que era criança até aquele momento, resultado de um plano mal elaborado por ele e pela sua esposa Sonja, que é também sua prima e por quem ele sempre fora apaixonado.
Woody Allen, que também assina o roteiro dessa produção, compôs o enredo de sua comédia tomando como base autores notáveis da literatura e também do cinema, transformando a sua obra numa compilação de vários títulos literatos-cinematográficos. Impossível não assistir a essa obra fílmica sem ser remetido a algumas produções literárias russas, como, por exemplo, Os Irmãos Karamazov, de 1879, escrito por Fiódor Dostoiévski. De certa forma, pode-se relacionar o personagem principal dessa comédia alleniana ao personagem principal do livro: tanto Boris quanto Aliéksiei Fiodórovitch Karamazov são personagens que “causam vergonha” – Boris a si mesmo e Karamazov ao narrador do livro, que se desculpa pela insignificância de seu protagonista. Ainda dessa obra, facilmente se obtêm comparações entre um dos maiores questionamentos propostos em ambas as tramas. Boris e Sonja – esta brilhantemente interpretada por Diane Keaton – enfrentam-se numa discussão a respeito da existência de Deus e das interações sociais considerando que todos assumam a inexistência Dele. Essa é basicamente uma das proposições do romance russo, na qual os diálogos muitas vezes se focam nessa discussão filosófico-religiosa. Verifica-se também a intertextualidade que correlaciona a história de Boris Grushenko à obra Crime e Castigo, do mesmo autor russo já citado. Nota-se que se encontra aqui o maior caso de paródia irônica, a qual – não se pode esquecer - está presente do começo ao fim dessa obra cinematográfica. Rodion Românovitch Raskólnikov é psicologicamente semelhante a Boris, as suas situações, no entanto, são satiricamente opostas – enquanto o primeiro de fato comete o crime (assassina uma pessoa para evitar mais problemas de opressão no futuro), o outro apenas tenta; ironicamente, Boris é preso e condenado à morte e Rodion fica preso pelo tempo determinado, sem uma punição tão severa quanto perder a vida.
Com isso, Woody Allen prova que “um autor pode usar o discurso de um outro para seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientação significativa ao discurso que já tem sua própria orientação” (BAKHTIN, 1970:147 apud FÁVERO, 1994: 53). O modo como o cineasta faz isso é tomando “emprestado” o conteúdo original e revertendo o seu sentido, criando, então, um efeito parodístico – justamente esse que é facilmente perceptível e pungente ao longo de A Última Noite de Boris Grushenko. O princípio básico da paródia é respeitado e o efeito cômico torna-se inevitável, mas o grande mérito do uso desse recurso de linguagem, onde “o discurso parece estar tratando do referente X, quando, na verdade, o que está em tela é o referente Y” (BLIKSTEIN, 1994: 45), é a excelente crítica social que o diretor obtém, misturando-a ao humor refinado de uma história muito inteligente. Allen constrói as características principais dos seus personagens exatamente pela desconstrução deles: Grushenko é o protagonista inapropriado, numa história em que se espera por um herói nato. Numa das cenas, essa indisfarçadamente caricata, Boris torna-se o grande herói russo por vencer um grupo de soldados franceses – o personagem, no entanto, não tinha intenção disso. Eis a possível realidade por trás dos méritos: nem sempre se conquista um objetivo por esforço premeditado. Sonja é uma espécie de contradição ensimesmada – crente em Deus e nos princípios morais, ela não hesita em relacionar-se adulteramente com outros homens nem em propor assassinato. Construída com muito humor – e cheia de carisma, graças à atriz –, Sonja talvez seja a figura mais crítica de toda a obra de Woody Allen, porque ela é claramente humana.
São justamente esses dois personagens que atribuem o recurso polifônico ao filme. A história é contada pelos dois, as suas vozes se fundem, ela se sobrepondo à personalidade dele, que narra a história. Assim, é difícil saber quanto os seus pensamentos são apenas seus e o quanto eles são influenciados pela personagem. Polifonia semelhante pode ser encontrada na obra Guerra e Paz, de Tolstoi, escrita no ano de 1865 – o autor divide o seu romance em dois momentos, sendo claramente diferentes as suas partes da trama, haja vista em que numa se prevalece a narrativa e o na outra é apresentado exclusivamente o tema. Tal como no romance tolstoiano, em que as duas partes se completam – ou melhor, se somam – a fim de dar um entendimento maior ao leitor, na obra fílmica Boris e Sonja se completam – e neles, isso se verifica pela oposição de opiniões, que é bastante usual. Indiscutivelmente, Woody Allen intensificou a polifonia do seu filme ao correlacioná-lo às obras do sueco Ingmar Bergman, principalmente ao clássico Quando Duas Mulheres Pecam, no qual duas mulheres - na verdade, a mesma pessoa – interagem, criando então toda a linguagem fílmica a partir de duas vozes. Allen fez questão de esclarecer sua referência explicitamente: numa das cenas finais, Sonja e sua prima, Natasha, são focalizadas num ângulo em que seus rostos se fundem, tornando-se um só. O diretor assim assume a incontestabilidade de seu recurso polifônico no filme, tal como Bergman fez na sua obra, lançada em 1966. Não se pode deixar de notar também o diálogo evidente entre esse filme e outro título de Bergman. Quando Boris Grushenko vê a morte e estabelece uma comunicação com ela, torna-se clara a referência à obra O Sétimo Selo, dirigida em 1957.
De um modo muito intenso, as semelhanças entre as obras já comentadas aqui são um fator a mais para correlacionar esses títulos e uni-los em seus argumentos fílmicos e literários, fechando-os num ciclo. Em Os Irmãos Karamazov, há a constante pergunta: “Deus existe, de fato?”; em O Sétimo Selo, tem-se a discussão de um personagem com a morte, no mesmo período em que ele entra num profundo questionamento a respeito da sua fé em Deus – esse elemento também está presente na obra literária russa. Por sua vez, A Última Noite de Boris Grushenko reúne ambos os elementos dessas obras e recria-os satiricamente, mantendo, no entanto, a referência a esses filmes, e utilizando esses elementos invertidos para fazer uma crítica, que parece muito invertida em relação a si mesma. Basta comparar: no filme bergmaniano de 1957, o cavaleiro desafia à morte, propondo um jogo – e como em todos os jogos, apenas um pode vencer (uma alusão clara ao constante duelo entre o homem e o medo de morrer); já na comédia de 1975, Boris, um soldado covarde (potencialmente em oposição à figura do valente cavaleiro) interage pacificamente com a morte, conversando como se ela não lhe assustasse – na cena final, de extrema paródia ao último momento do filme sueco, Boris segue à morte dançando e cantarolando pelo seu caminho (aqui, o homem, embora tema a morte, respeita-lhe a autoridade, como se ela fosse mais do que a sua vontade de viver).
Não restam dúvidas de que A Última Noite de Boris Grushenko seja um filme com excelentes qualidades e a principal dela – que é exatamente o foco desse artigo – é o modo como a intertextualidade parodística é utilizada como argumento para esse roteiro. O diálogo entre obras literárias e cinematográficas intensifica o humor do filme, tornando-o, portanto, uma produção fílmica elogiável. Pode-se garantir que uma das mais evidentes funções sociais presentes nessa produção estadunidense é entreter em simultaneidade com uma amostra de linguagem extremamente sofisticada, na qual se encontram intertextualidade com outras obras e diálogos cheios de silogismos – o que, nesse contexto, só serve para alavancar a qualidade dessa comédia de Woody Allen, que ele mesmo não considera ser um dos seus filmes mais fáceis, exatamente pelo seu tom satírico e ao mesmo tempo crítico.
* Luís Adriano de Lima é convidado especial do CINEBULIÇÃO para o encerramento do Especial Diretor do Mês - Janeiro/2011.
* Esse artigo faz parte do Especial Diretor do Mês - Janeiro/2011: Woody Allen.
A ÚLTIMA NOITE DE BORIS GRUSHENKO (Love and Death, EUA, 1975).
Direção: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, Georges Adet, Frank Adu, Edimond Ardisson, Féodor Atkine, Albert Augier, Yves Barsacq, Lloyd Battista, Jack Berard, Eva Betrand, George Birt.
BIBLIOGRAFIA:
BAKHTIN, Mikhail. La Poétique de Dostoïevski, 1970, apud FÁVERO, L. L., Paródia e Dialogismo. In: BARROS, Diana Pessoas de, FIORIN, José Luiz (orgs.)Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin Mikhail. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1994.
BLIKSTEIN, Izidoro. Intertextualidade e polifonia – O discurso do plano “Brasil novo”. In: BARROS, Diana Pessoas de, FIORIN, José Luiz (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin Mikhail. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1994.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução de Fernando Albagli e Benjamin Albagli. 1. ed. especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
DART, John. Woody Allen, Theoligian. Century Christian, 1977, p. 585. Disponível em: < http://www.religion-online.org/showarticle.asp?title=1171> Acesso em: 15 de janeiro de 2011.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo, tradução de Rosário Fusco. Volumes 1 e 2. São Paulo: Abril, 2010.
––––––. The Idiot, tradução de Constance Garnett. New York: The Modern Library, 1935.