3 de dez. de 2010

10:30 pm Summer


Capricho espanhol

por Adriano de Oliveira


     É o título de uma peça musical de Rimsky-Korsakov (onde "capricho" tem outro significado, associado à sua feição rapsódica), mas também uma expressão que poderia se aplicar adequadamente a um dos melhores - e menos conhecidos - filmes de Jules Dassin (1911-2008). O excelente realizador da inesquecível película de assalto "Rififi" (1955), até hoje um paradigma do subgênero, e da imortal comédia dramática "Nunca aos Domingos" (1960) fez do filme rodado em terras espanholas "Corações Desesperados" ("10:30 P.M. Summer", EUA/Espanha, 1966) uma obra de arte, ainda que pouco lembrada. Felizmente, a Lume Filmes resgata esse título em DVD junto ao mercado brasileiro, permitindo fazer justiça histórica a um tesouro cinematográfico enjeitado pela memória coletiva.

     A história envolve um grupo de turistas em viagem pela Europa: o casal formado por Maria (Melina Mercouri, esposa e musa de Dassin) e Paul (Peter Finch, de "Rede de Intrigas"), sua filha Judith e a amiga da família Claire (Romy Schneider, a inolvidável "Sissi, A Imperatriz"). Ao chegarem em uma vila espanhola para se hospedarem e se abrigarem de uma inclemente tempestade, a encontram em alvoroço. A balbúrdia se dá em função de um duplo crime passional ocorrido naquela mesma jornada, quando Rodrigo Palestra (Julián Mateos) assassina a sangue frio sua esposa infiel e o amante dela em uma cena que traz duas evocações. A primeira delas é o clima de faroeste em que ela se ambienta cinematograficamente. A segunda é um inesperado diálogo entre "O Veneno da Madrugada" (2004) - de Ruy Guerra - e "Corações Desesperados" a partir de seus traços em comum (a chuva incessante, os cenários vilanenses latinos), numa dessas maravilhosas rimas que o Cinema consegue proporcionar.

     Não é apenas o entorno que se mostra agitado, porém o trio de protagonistas idem. Maria se mostra uma alcoólatra inveterada e não se importa de que Paul e Claire vivam um romance... com o detalhe que Maria se sente atraída por Claire (a cena em câmera subjetiva onde a mão da primeira tateia no ar o corpo da segunda - localizado em plano posterior - não apenas sintetiza essa sedução, como lhe reveste de um ar lubricamente poético). Na verdade, há um duplo triângulo amoroso na trama toda. O primeiro se conclui de maneira trágica, na história de Rodrigo Palestra. E o segundo, como acabará?

     O roteiro é baseado em livro de Marguerite Duras e também co-assinado por ela (autora de "Hiroshima, Mon Amour", do qual se encontram alguns ecos aqui). O filme não nega suas origens, mostrando aspectos existencialistas e donoveau roman. Maria é a mola-mestra dessa frente, da riqueza de sua personagem emergem as características do texto de Duras com mais vigor.


     A fotografia do húngaro Gábor Pogány ("A Vênus Imperial") é excepcional, efetuada com a diversidade que cada atmosfera cênica exige, chegando a resultados impressionantes. Muitas cenas adquirem um forte caráter pictórico, dada a excelência de sua luz. Vamos destacar algumas delas: as visões de Maria na sacada do hotel durante a tempestade e a figura misteriosa de Palestra em meio aos telhados; as cenas dos frequentadores da taberna (Rembrandt com uma câmera na mão, poderíamos dizer); a paisagem noturna à beira da estrada recebe uma aura fantasmagórica através das luzes dos faróis do carro; a alvorada de Rodrigo e Maria, com o sol se erguendo por trás da cabeça do primeiro; as nuas ruas de Madrid. Um capricho a mais em terras espanholas, inclusive elementos de fotografia expressionistas no uso da sombra são empregados em certas passagens. A dinâmica de câmera é uma aula de técnica para sua época, bem como a ágil montagem (a cargo de Roger Dwyre) da película: exemplos de arrojo.

     Junte-se a isso a atuação mesmerizante de Mercouri, tocando o over sem medo, dirigida por um Dassin tão seguro quanto ousado. O resultado não poderia ser melhor. Una obra maestra.

Artigo originalmente publicado no Cine Revista.


CORAÇÕES DESESPERADOS (10:30 P.M. Summer, EUA/Espanha, 1966)
Direção: Jules Dassin.
Elenco: Melina Mercouri, Peter Finch, Romy Schneider, Julián Mateos.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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