26 de set. de 2010

A Propósito de Nice





por Luiz Santiago


Neste filme, por intermédio de uma cidade de significativas manifestações, assistimos à crítica de um certo tipo de mundo. De fato, logo depois de mostrar o ambiente de Nice e o espírito que nela se leva – como em outros lugares, infelizmente! – o filme tende à generalização de diversões grosseiras colocadas sob o signo grotesco, da carne e da morte; que são derradeiros sobressaltos de uma sociedade negligente a ponto de nos dar náuseas e nos tornar cúmplices de uma solução revolucionária.

Jean Vigo


     Década de 1920. As vanguardas cinematográficas e artísticas estavam em alta na Europa. Era tempo de experimentar, trazer para a realidade uma versão crítica do que se vivia, fazer pensar em temas psicanalíticos, antimilitaristas e revolucionários. Foi nesse ambiente que Jean Vigo cresceu e formou sua sensibilidade artística, impulsionada pelas questões que guiaram a vida de seu pai: a liberdade e a justiça social. Essa questões, aliadas a uma amarga – porém poética – visão da sociedade, fizeram parte da curta e genial filmografia de Vigo, que conta com apenas quatro títulos, sendo o primeiro deles, A Propósito de Nice (1930), o objeto de nossa presente análise.

     Nice, cidade localizada na Côte d'Azur francesa, tinha, à época da realização desta estreia de Jean Vigo, a fama de “cidade do sol e da felicidade”. Propagandas e cartazes pediam para que a população deixasse Paris e visitasse o lugar onde havia sol o ano inteiro, e onde uma bengala plantada no jardim floresceria no dia seguinte. São visíveis os elementos que chamaram a atenção de Vigo para a cidade, palco deste curta-metragem experimental que teve Boris Kaufman (irmão caçula de Dziga Vertov) como câmera e diretor de fotografia. Vigo trará para o espectador alguns lados de algumas moedas que circulavam pelo idílico paraíso litorâneo.



     De início, pensamos tratar-se de um documentário turístico. Após uma explosão de fogos, panorâmicas aéreas da cidade nos localizam geograficamente. Atendendo ao chamado da propaganda, vemos alguns turistas (pequenos bonecos em uma estação-maquete) chegarem à cidade e logo serem “puxados” como se fossem fichas de uma mesa de jogos num cassino qualquer. Daí para frente, planos cada vez mais particulares dão-nos uma visão ampla da cidade em diversos lugares e exercícios. Saímos de grandes panorâmicas, para planos gerais e médios em palmeiras, bonecos, garçons, pedestres, pedintes, pés, jornais, rostos, dorminhocos, jogadores de bocha e tênis, dançarinas, fábricas e navios. Vigo passa da visão à distância, onde tudo é belo, e não se vê os becos sujos, para a captação próxima do lixo das sarjetas, das crianças sujas, da água parada nas pernas juntas de um anjo em um cemitério, da fumaça que polui a cidade. O filme é uma exposição dialética do cotidiano.

     Mas a genialidade da obra não se daria se não fosse a espetacular montagem. Para a época, uma revolução no ritmo. O filme é vivo, ganha um ar road, a câmera sempre se põe em percurso pelo espaço cênico que é a cidade, captando humanos e natureza em movimento. O fluxo fílmico é matematicamente exato, não sobram espaços mortos. Além da impecável exposição de planos, o dinamismo usado por Vigo e Kaufman nas tomadas, impressionam muito a quem as observa atentamente. Desde os planos diagonais que se ajustam, quando “chegamos” à cidade até a aceleração e uso de câmera lenta em diversas sequências, somos brindados com inúmeras imagens virtuosas que mostram a rigidez fria, séria, e quase lúgubre do mundo burguês, em contraponto com o carnaval miserável dos pobres, mundos que se unem e dão a estrutura cultural da cidade, imperceptível, se olhada por um visitante comum, mas o espectador, aqui, é colocado frente a um microscópio lírico-social de onde se pode ver as muitas faces de Nice.



     O filme tem um enorme poder de encanto por sua diversa e criativa exposição narrativa e rítmica, e mostra o flerte de Vigo com as experimentações das vanguardas que explodiram na década anterior à sua realização. A propósito de Nice é uma obra notável, um ótimo exemplar do período de transição do cinema silencioso para o sonoro, uma das melhores estreias já realizadas na sétima arte.


A PROPÓSITO DE NICE (À propous de Nice, França, 1930)
Direção: Jean Vigo


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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