por Luiz Santiago
Embora eu faça uso de um termo tão caro a Gilles Deleuze no título acima, minha intenção não é discorrer sobre as características da imagem cinematográfica e o seu caráter "vivo". Aqui, o termo "imagem-movimento" será entendido por "fluxo fílmico ordenado" (movimento externo, efetuado na montagem), e "fluxo interno de composição" (movimento obtido no momento em que se realiza a obra), e que pode ser gerado pelo que é posto em cena, ou pelo andar da câmera. O filme em questão é o longa-metragem musical Ibéria (2005), do diretor espanhol Carlos Saura, que já teve uma de suas obras, Cría Cuervos (1976), "Cinebulida" por essas paragens.
Após uma série de filmes anti-franquistas na década de 1970, Saura desligou-se mais do social e político para mergulhar no lírico musical, e sua primeira obra-prima nesse novo gênero foi Bodas de Sangue (1981). Os filmes musicais de Carlos Saura possuem um forte caráter metalinguístico, que se aprimorou e fortificou com o tempo. Podemos ainda citar outros notáveis musicais do cineasta, cada um ambientado em uma realidade cênica distinta, mas mergulhados na metalinguagem e na fusão artística entre cinema, teatro, ópera e música: Carmen (1983) - adaptação da ópera de Georges Bizet -, O Amor Bruxo (1986) - adaptação da obra de Manuel De Falla -, Ay, Carmela! (1990) - adaptação de uma clássica opereta espanhola -, Flamenco (1995), e Tango (1998). De todos esses filmes, Ibéria é o mais diversificado, porque está dividido em pequenos esquetes executados em diferentes espaços-palco, sob variadas intensidades e matizes de iluminação fotográficas, figurinos, arte, ritmo e gêneros musicais.
Saura inspirou-se em algumas obras do compositor espanhol Isaac Albéniz (1860 - 1909)¹ para conceber Ibéria, um título genérico dado à união de todas as 17 músicas do compositor executadas no filme². A partir daí, podemos dizer, parafraseando o conceito de Eisenstein, que Saura imaginou Ibéria de maneira vertical (música + imagem), como numa partitura com duas claves em contraponto. Cada esquete musical tem um tratamento diferente, e a câmera desliza pelo cenário para captar as particularidades daquilo que dá gloriosa vida ao filme: o movimento do corpo. Apenas em Olympia (Leni Riefenstahl, 1938) eu presenciara a câmera ser tão precisa e sedenta no retratar o corpo em movimento. Em Ibéria, essa fascinante máquina, embalada pela música, toma o espaço-palco, relaciona-se com os pares em cena, incita à poesia, excita, emociona, desdobra-se em posições e sentimentos, a ponto de chorar ao fim da execução, como acontece com o bailarino ao fim de sua performance em Granada.
Além da direção, Saura é responsável pela cenografia do filme. Para abrigar os números musicais, o diretor-cenógrafo disponibilizou um espaço amplo para o movimento dos dançarinos, e o cercou de espelhos, paredes transparentes, telas de projeção, e vazio. O máximo que se permitiu por em cena foram algumas cadeiras, um piano, e uma fogueira. No espaço que cerca a "arena" de execução musical, ficam os músicos. A fotografia de José Luis López-Linares satura, reflete e refrata toda a espécie de cor-sentimento, dando a tonalidade psicológica daquilo que se explica na tela através da música e da dança. Os figurinos de Sonia Grande acompanham a cultura de cada "música-região" e o "sentimento musical" expresso, nunca sendo díspar em suas escolhas de cor e modelo, e nunca subtraindo o poder poético-sensual implícito do início ao fim do filme. Um bom exemplo dessa adequação cênico-psicológica são as mulheres do cortejo fúnebre em Corpus Sevilla, todas vestidas de negro, mas extremamente erotizadas pelo modelo de roupa escolhido, pelo leque que usam, e pela maquiagem sutil e sugestiva de Gregorio Ros.
Em Ibéria, a imagem é um complemento da música, e movimenta-se em todos os sentidos possíveis. Algumas telas de projeções postas em determinados números, multiplicam o dançarino, e dão à cena uma profundidade de campo quase surreal. Carlos Saura alia-se ao diretor de fotografia para plasmar emotivamente e com o máximo de possibilidades, as músicas executadas. Mas isso não é tudo. A imagem desdobra-se e encontra movimento até em sua própria revelação, e a câmera não se envergonha em mostrar toda a equipe técnica, já no "primeiro ato" da obra, Evocación. Já citei o caráter metalinguístico dos musicais de Carlos Saura. Essa característica alcança um tal nível em Ibéria, que a imagem fílmica ganha a dimensão de um show, de uma dança de rua, de uma ária operística, mas prende-se a si mesma com elementos cinematográficos próprios como a fotografia e o cenário, o que lhe enriquece tremendamente de sentidos, já que o espectador sabe não estar diante de um produto propriamente cinematográfico, embora seja cinema, aquilo que vê. Em jogo com essa dubiedade de sua não-diegese, Saura põe a câmera na grua e busca dinamicamente tudo o que o cenário tem para mostrar. A quebra dessa entrega total do espaço cênico se dá com a montagem de Julia Juániz, que não arrasta o filme, mesmo optando por muitos planos longos. O corte é preciso e sempre revelador. Um plano de detalhe dos pés, o rosto de um personagem, takes suspensos de seus movimentos, tudo isso compõe as sequências que resultam nos esquetes do filme. Todos os membros dos corpos falam, e são retratados como se dialogassem ou tivessem um breve discurso solo em meio a apresentação. Mais uma vez, a imagem ganha uma mobilidade única, e a visível separação, quase como um capítulo de um livro, de uma sequência musical para outra, é um crescendo incessante que termina em meio a chuva, entre gotas que tomam a visão da objetiva, iluminadas por uma forte luz que indica que o "sonho" acabou.
Multiplicando enormemente o poder de movimento da imagem, e fazendo do cinema um palco revelador de emoções, Carlos Saura nos presenteia com uma obra musical completamente diferente daquelas a que estamos acostumados. Se o caráter onírico ou fantasioso é a premissa de um musical, Saura faz disso a sua raiz, e a alimenta, cultiva e a colhe em forma de um não-cinema. Ibéria é um musical de bastidor, separado em cenas musicais distintas, compostas por solos de piano e violões, flamenco, jazz, ballet clássico, dança contemporânea, números de sapateado, um número angustiantemente silencioso, e um final leve e poético, daqueles de fazer paralisar na frente da tela o espectador maravilhado com tanta beleza. O elenco conta com os principais representantes da música e da dança espanhola contemporânea ou de tradição: Sara Baras, Antonio Canales, José Antonio Ruiz, Aida Gómez e Patrick De Bana (dançarinos); Manolo Sanlúcar, Gerardo Núñez e José Antonio Rodriguez (violonistas); Chano Domínguez e Jorge Pardo (estrelas do flamenco-jazz); e os cantores Enrique Morente (uma lenda viva) e Estrella Morente, sua filha.
Ibéria é um não-filme-espetáculo que usa do cinema como uma vereda para fazer caminhar toda a força em movimento imagético que possui, e o resultado, por mais que se tente, é impossível dar conta em palavras.
IBÉRIA (Iberia, França, Espanha, 2005)
Direção: Carlos Saura.
Elenco: Sara Baras, Antonio Canales, José Antonio Ruiz, Aida Gómez e Patrick De Bana, Manolo Sanlúcar, Gerardo Núñez, José Antonio Rodriguez, Chano Domínguez, Jorge Pardo, Enrique Morente, Estrella Morente.
1 - Duas músicas desse compositor, Asturias e Granada, também podem ser ouvidas em Vicky Cristina Barcelona (2008), de Woody Allen.
2 - Eis a lista completa e cronológica das músicas executadas em Ibéria: Evocación, Aragón, Bajo La Palmera, Granada, Córdoba, Cádiz, Triana, Torre Bermeja, Almería, Corpus Sevilla, Rondeña, El Albaicín, Zortziko, El Puerto, Asturias, El Albaicín (sim, novamente, mas o número apresentado é outro), e Sevilla.