30 de out. de 2010

A Hora do Lobo



por Luiz Santiago

     Foi a partir de 1962, com o lançamento de Luz de Inverno (segunda parte da Trilogia do Silêncio de Deus), que Ingmar Bergman abandonou a subserviência às ideias cristãs em seus roteiros – que traziam uma pesada carga dramática de culpas ético-morais, e incessante procura por justificativas ou expiação – e empreendeu, com o lançamento de Persona (1966), sua revolução formal, estética e ideológica, ou a própria recusa e transfiguração do cinema que fizera até aquele momento. Neste filme, o mestre sueco delineou a era de películas iconoclastas, livres de bloqueios, e mais existenciais que traria às telas até Saraband (2003), sua derradeira obra.

     Mas eis que a alma inquieta do realizador, logo após o seu lancinante filme-revolução, já vislumbrava o conteúdo do próximo trabalho. Antes, ainda em 1966, Bergman dirigiu o episódio Daniel, para o filme Stimulantia (1967), e só então, pode mergulhar no trabalho de um roteiro nunca filmado, mas escrito antes mesmo do icônico PersonaOs Antropófagos.

   A trama desse roteiro só chegou a ser conhecida por Erland Josephson, amigo e integrante do triunvirato virtuoso de atores de Bergman, ao lado de Max von Sydow e Gunnar Björnstrand; e Liv Ullmann, à época, companheira do diretor, já em avançada gestação.


     Com a possibilidade de Ullmann mudar-se para a Noruega, Bergman reescreveu o roteiro, adaptando-o às possibilidades da atriz, e foi então que Os Antropófagos transformou-se no único filme de terror do cineasta, A Hora do Lobo (1968). Trata-se de uma película gótica e vampiresca, que dialoga com o mundo dos vivos e dos mortos, e semeia a perturbação.

     Johan Borg é um pintor muito introspectivo, que vai com a esposa Alma para uma das ilhas Frísias, passar uma temporada do ano, provavelmente o outono, pelo que podemos subtender das indicações fotográficas. Desde o início do filme, percebemos que Alma é a personagem que sempre rompe o silêncio, enquanto Johan sublima desejos e expressa traumas e sentimentos através de sua pintura, falando o essencial, e muito raramente.

     Como se não bastasse a convivência cada vez mais opressiva entre o casal, alguns habitantes muito estranhos da ilha entram em cena para deixar a atmosfera ainda mais tensa e densa. Sabemos que Johan tem um contato mais assíduo com a “fauna humana” do arquipélago, e isso nos é informado em um diálogo que ele tem com a esposa, enquanto lhe mostra os esboços que fez dos homens-aranha, do perigoso homem-pássaro, da velha que não pode tirar o chapéu senão o seu rosto cai, dos insetos, dos antropófagos, etc., todos “eles”, habitantes da ilha.

     A aparição desses habitantes, no entanto, não é fora de propósito: “eles” surgem para causar a discórdia e a inquietação dos protagonistas, como se dominassem um segredo perturbador, e dessa posse, surgisse um poder de sugestão invencível, capaz de arrastar Johan e Alma para um mundo onde o ambiente onírico e o estado de vigília, o consciente e o inconsciente, se entrelaçam.


     Deus, ou qualquer outra indicação do divino, sequer são aludidos durante os 90 minutos do filme.

     A fim de apagar ainda mais as fronteiras entre realidade e sonho, Bergman inseriu algumas divisões técnicas que tem por objetivo alterar constantemente nossa opinião sobre o filme. A primeira dessas ocasiões é a seguinte abertura em intertítulos:

     O artista Johan Borg desapareceu a alguns anos sem deixar vestígios, de sua casa na ilha de Baltrum, uma das ilhas Frísias. Sua esposa Alma depois me deu o diário de Johan que ela encontrara entre os papéis dele. Esse diário e o relato de Alma são a base deste filme.

     Mas em off, segundos depois, ouvimos a gravação de uma equipe técnica trabalhando na construção do cenário. Ouvimos a voz de Bergman dando ordens e falando aos membros da equipe, até pedir silêncio para começar a gravar. Então, um fade in nos apresenta a casa dos Borg em um belo plano geral, uma mesa com uma pequena cesta de frutas nos planos iniciais e Liv Ullmann vindo ao encontro da câmera, e falando diretamente para ela, como um depoimento de documentário. Há então um flashback, representação do depoimento, que será o corpo da obra.


     Aos 46 minutos de projeção (de uma película que possui 90 minutos), o título VARGTIMMEN reaparece, como se marcasse o início de um “novo filme” depois daquele já houvéramos visto. E de fato, esse segundo momento separado pelo título, trará o medo (externo e interno) causado pela “hora do lobo”, momento da madrugada em que as crianças nascem, a maioria das pessoas morrem, os pesadelos acontecem, e quem está acordado, teme o mais ínfimo ruído.

     Além das mudanças de narrativa ao longo da fita, é curioso observarmos que os seus trinta primeiros minutos são editados como uma espécie de diário, ou seja, nenhuma sequência se completa, e todas são intercaladas por um fade. Esse ritmo pausado, reticente, que se arrasta na primeira meia hora do filme, muito sutilmente se arrefece, e as fusões de imagem ou o simples corte, evidenciam-se no decorrer das cenas seguintes.

     Assim como em outros dois filmes perturbadores do diretor, O Rosto (1958) e O Rito (1970), temos artistas como protagonistas principais deparando-se com um imenso obstáculo que aparentemente não podem transpor. O dueto de filmes citados representam a corrida das personagens para libertarem-se de um sufoco interno e a uma coação externa ao homem-personagem que são. Mas em A Hora do Lobo, esse homem-personagem está completamente subjugado pelas “regras” dos demoníacos habitantes da ilha, que ao fim de tudo, arrastam Johan para ser humilhado na frente de todos eles, seguindo-se a sequência da tortura e da vingança, na floresta, onde a aparente humanidade da “fauna humana” do arquipélago se revela uma farsa.


     Em A Hora do Lobo, temas recorrentes na obra do mestre sueco compõem a atmosfera da ilha. O primeiro deles está ligado à localização geográfica do espaço cênico macro escolhido: a água. Sugestão de uma infinidade de possíveis, a água que cerca as personagens tem uma função opressora, algo mais evidente na penúltima sequência do filme, em uma floresta pantanosa. O segundo tema é a criança, aqui, uma possível representação do pai de Johan – o homenzinho no armário, conforme história do próprio artista –, ou apenas a figuração de seu medo mais íntimo, o medo de ser mordido. O terceiro tema, é a representação teatral, que acontece no castelo do Barão von Merkens, ao som de uma sombria ária. Sobre essa representação, penso ser a própria ironia da realidade: Johan e Alma são como as duas personagens em cena no pequeno palco de marionetes, movidos com macabra maestria pelo demoníaco mestre de cerimônias.

     O que muito intriga o espectador, são as várias possibilidades de interpretação para o terror bergmaniano. A ilha poderia ser o inconsciente com suas muitas neuroses, repressões e traumas, ou apenas um lugar geograficamente perfeito para um terror psicológico do nível de A Hora do Lobo.

     Sven Nykvist acompanha as reticências da edição em sua fotografia, que aqui, prima pelo extremo contraste e por iluminações em primeiro plano, deixando os espaços mais afastados na penumbra ou na completa escuridão. O uso de velas e de meia-luz no rosto dos protagonistas, ao lado de ângulos simples e planos descritivos, tornam simples esta película angustiante, mas a sombria simplicidade, intensificada pela música arrepiante, faz do todo, um inferno disfarçado em ilha.


     Os atores de A Hora do Lobo são visivelmente vindos do teatro, e carregam uma dramacidade quase cínica, o que realça a personalidade maligna de cada um. O destaque vai para o casal protagonista magnificamente interpretado por Liv Ullmann e Max von Sydow, duas lendas vivas do cinema sueco (Ullmann, hoje, é cineasta, sendo o seu belíssimo Infiel (2000), com roteiro de Ingmar Bergman, uma das melhores produções suecas da década; e Sydow continua atuando, sendo alguns de seus últimos trabalhos em O Escafandro e a Borboleta (2007), episódios da série The Tudors (2009), Ilha do Medo (2010) e Robin Hood, 2010).

     A Hora do Lobo é um olhar perturbador para o abismo, seja ele do próprio homem, ou da maldade que o cerca. Difícil encontrarmos um filme que tenha tantas alusões ao mundo e aos medos pessoais exteriorizados, e ao mesmo tempo, deixe o espectador embasbacado e com a pele arrepiada pelo medonho e pela desesperança deixada pelo desfecho. Ao olharmos com atenção para o filme, não sabemos se nos vemos refletidos, ou julgamos racionalmente o que acreditamos ver.


     Nietzsche disse, em seu Além do bem e do mal: “quem enfrenta monstros deve ficar atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo também olhará para dentro de ti”. Essa é a tese sustentada por Bergman. O resto, é o terror de não podermos ter certeza de que tudo o que vimos foi pura ficção, pois, em algum momento de nossas vidas, os relógios já marcaram a hora do lobo, e o mundo que se nos apresentou não estava lá tão distante da ilha que acabamos de conhecer.


* Esse filme ocupa o 7º Lugar no Veredicto nº2: Ingmar Bergman.


A HORA DO LOBO (Vargtimmen, Suécia, 1968)
Direção: Ingmar Bergman.
Elenco principal: Max von Sydow, Liv Ullmann, Ulf Johansson, Naima Wifstrand, Erland Josephson, Gertrud Fridh, Bertil Anderberg, Gudrun Brost, Ingrid Thulin.

FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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