31 de ago. de 2010

Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto



por Luiz Santiago 


     Sidney Lumet estreou no cinema fazendo história. Seu primeiro longa-metragem, Doze homens e uma sentença (1957), é uma obra-prima, surgida na época em que o cinema lutava contra a televisão, e experimentava novos formatos de tela. Já nesse primeiro filme, é possível identificar a forte influência do teatro na vida do cineasta, nascido em uma família de artistas judeus, em 1924.

     Durante sua careira, Lumet alternou trabalhos para a TV e para as grandes telas. Sua trajetória no cinema teve uma queda criativa dos anos 1960 até o início da década seguinte, quando dirigiu um de seus primeiros sucessos novaiorquinos, Serpico (1973), seguido pelo memorável Um dia de cão (1975), ambos com Al Pacino. A cidade de Nova Iorque é representada por Lumet em seu cotidiano selvagem, sempre em locações diferentes, e sob escrupulosos ângulos de câmera. Lumet não vê poesia nas tardes quentes dos distritos, e nem lirismo no que se passa atrás das portas enquanto a cidade se movimenta incessantemente. A Nova Iorque do cineasta é “podre”, mesmo quando vista pelos olhares e espaços de sua elite. Violência, transgressão de valores e crime, são temas recorrentes em sua filmografia, embora existam exceções, pois o diretor trabalhou com diversos gêneros, tendo em seu currículo, inclusive, um musical com Michael Jackson, The Wiz (1978).

     Depois de Gloria (1999), Sidney Lumet ficou um tempo longe das telas (tanto das grandes quanto pequenas), retornando em 2004, com um trabalho para a TV, seguido de um curta-metragem. Dois anos depois, voltaria aos longas, com Find Me Guilty, e em 2007, aos 83 anos, presenteou-nos com o soberbo Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto, obra que reflete uma transformação social contemporânea, a desagregação da unidade familiar¹, tema trabalhado no mesmo ano por Woody Allen, em O Sonho de Cassandra.



     [Que você esteja no paraíso por meia hora] Antes que o diabo saiba que você está morto (2007) conta a história de dois irmãos, Andy (interpretado pelo incrível Philip Seymour Hoffman) e Hank (Ethan Hawke, numa atuação memorável), que planejam roubar a joalheria dos próprios pais, mas as coisas não funcionam como o planejado. Pequenos “delitos ou descuidos paralelos” juntam-se à bola de neve mafiosa dos dois irmãos, e o “simples roubo” transforma-se em um filme que é digno de ser comparado a uma tragédia grega moderna. A família, aqui, é corroída completamente por ódio, vingança e crime.

     O que primeiro impressiona o espectador atento, é o perfeito funcionamento da forma e conteúdo do filme: direção, montagem e roteiro. A organização invertida e alternada dos planos-sequência alcançou um nível de altíssima qualidade, e revisou o uso desta técnica que pode ser a perdição de qualquer filme, se mal usada, mas que gera trabalhos de qualidade única, quando manipulada por diretores inovadores². No filme de Sidney Lumet, a montagem visita os seus mais diversos níveis. A planificação e os movimentos de câmera também se destacam na composição da forma, principalmente o zoom e as panorâmicas dramáticas para frente e para trás.



     A narrativa de Antes que o diabo saiba que você está morto é atemporal, mas não se conclui como peças de um quebra-cabeça encaixadas ao fim da história. O diretor conseguiu decupar no processo da filmagem planos em diferentes ângulos – as diferentes visões das personagens – e Tom Swartwout os editou de modo a ligar ritmo, tom, e reflexão (para citar a irretocável nomenclatura musical dada à montagem, por Eisenstein), alcançando um resultado inovador, porque cada “esquete” apenas complementa ou enriquece a história do anterior, não fazendo-o refém das sequências futuras com revelação de mistérios ou visão global do todo: o que é para ser visto e entendido está posto na tela, as surpresas finais são consequências do processo da trama. O roteiro de Kelly Masterson é muito exato, deixa a verborragia de lado e opta pelo necessário, permite o construtivo silêncio, cortado apenas pela contraposição da música de Carter Burwell, um primor de partitura e um bom acerto na escolha das canções. No filme, o uso musical segue a linha de “tema e variações”, e o efeito conseguido é dos mais impressionantes: o suspense tem um ar de horror gerado pela música, a alma do visual é estampada pelo áudio.



     Andy “Caim” e Hank “Abel” são as personagens motores desta nova tragédia familiar, onde, mesmo os que terminam vivos, desaparecem do mapa. O núcleo familiar é completamente extinto. Moral e perdão não existem na Nova Iorque ensolarada e cinzenta dessas personagens. A necessidade de ganhar dinheiro fácil e o ingênuo plano do roubo, trazem à tona todas as faltas e sobras que rondavam as relações entre os membros da família.

     A fotografia de Christopher Nowak é irônica ao refletir muita luz e saturar de brilho as sequências mais obscuras do filme. Quanto mais nos aproximamos do final da obra e os elementos trágicos ganham altas proporções, mais saturadas ficam as imagens, até o ápice da última cena do filme, que termina em uma explosão de luz.
    
     O octogenário Sidney Lumet lida muito bem com o formato digital, e tem o mérito de não transformar seu filme em um poço de facilidades. A direção de Antes o diabo saiba que você está morto é uma aula de cinema, principalmente no que diz respeito à profundidade de campo. A câmera se movimenta com exatidão pelo cenário, como se estivesse assistindo a peças vivas de um jogo de xadrez. A organização dos espaços internos e o trânsito de atores é matematicamente captado. Além disso, a direção de Lumet é sempre teatralmente deliciosa. O destaque aqui é para a dupla protagonista, mas todo o elenco de apoio brilha em suas participações.



     Com tantos elementos a favor, guiados por uma mão precisa e experiente, o resultado não poderia ser menos genial. O filme é daqueles contemporâneos obrigatórios para cinéfilos e espectadores menos exigentes – mais um trunfo: por ser tão versátil em sua composição e tão atual em sua trama, o filme alcança boa parte dos públicos cinema, sendo o produto final uma obra de grandioso apuro estético e artístico, e de formato comercial, algo que muitos diretores, 50, 60 anos mais novos que Lumet, ainda não entenderam como funciona ou como fazer.


[1] - ...embora não seja um fato novo. Podemos identificar o núcleo desse “evento” em meados do século passado, fortemente representado nos anos 1960. Eu trabalho com a “outra margem” dessa transformação em Era uma vez a família nuclear.

[2] - Alguns exemplos: Alejandro González Iñarrítu em Amores Brutos; Brian De Palma em Olhos de Serpente; David Lynch em Império dos Sonhos; Gaspar Noé em Irreversível; Quentin Tarantino em Pulp Fiction; Spike Lee em O Plano Perfeito. Observem que eu procurei citar os mais diferentes estilos e meios pelos quais as montagens invertida e alternada, ou qualquer outra dupla de nomes que se possa dar à vertigem da composição do material cinematográfico, foi feita.


ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO (Before the Devil Knows You're Dead, Estados Unidos, 2007).
Direção: Sidney Lumet
Elenco principal: Philip Seymor Hoffman, Ethan Hawk, Marisa Tomei, Albert Finney, Michael Shannon, Amy Rrian, Brian F. O'Byrne, Rosemary Harris.




FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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