por Luiz Santiago
O filme de Jonah Markowitz, Shelter (2007), é daquelas obras cinematográficas que se equilibram na tênue linha que separa a mediocridade arredia de alguns dramas românticos, dos filmes comerciais que trazem suspiros artísticos, e não apenas adormecem o espectador com surf music, casal protagonista bonitinho e cenas injustificáveis de nudez ou um dicionário de palavrões, num roteiro sem pé nem cabeça, e final pré-definido.
Para um filme de baixo orçamento, com um elenco composto por atores medianos, e uma história de dois garotos que se apaixonam, Shelter consegue até ser notável, “não-provinciano”, porque se bifurca em temas que não necessariamente estão ligados ao objeto de desejo dos protagonistas, o que faz o espectador pensar um pouco, e só por isso, já merece aplausos.
Penso que o cinema, independente da forma ou conteúdo da produção, do gênero ou dos atores, da direção ou equipe técnica, deve manter o seu posto de arte. Arte é a criadora transposição (também sublimação) de sentimentos ou percepções variadas para um ‘formato X’, que observado por um espectador, deve causar impacto, e gerar o máximo de reflexão possível – mesmo que se use de tal reflexão para criticar a obra. Em Shelter, é possível encontrar elementos que nos permite afirmar estarmos diante de uma obra artística, mesmo que sua intensidade seja pequena. O filme escrito e dirigido por Markowitz foge dos romances correntes, abandona os clichês mais comuns, a fórmula “conquista-perde-reconquista”, e tanto no campo visual quanto na narrativa, reserva algumas surpresas.
O longa conta a história de Zach, jovem artista que trabalha em um restaurante e deseja entrar para o Instituto de Artes da Califórnia (a CalArts). O irmão de seu melhor amigo chega à cidade para passar um período de tempo, e os dois jovens conversam sobre o passado, surfam juntos, bebem, e acabam por se apaixonar, mas Zach não consegue lidar com as confusões internas, agravadas pelo seu extremo compromisso com a família e pela cobrança social em relação a uma namorada.
Algumas tramas paralelas circulam a principal: a relação de Zach e a ex-namorada Tori, a questão financeira que obriga a família a fazer rodízio de empregos para poder viver, o desapego da irmã de Zach em relação ao filho Cody e a responsabilidade paterna que o jovem acaba assumindo em relação ao sobrinho, o preconceito e a relutante quase-aceitação da irmã em relação à homossexualidade do irmão, e, como não podia deixar de ser, a “barriga do roteiro”, que é a questão do pai de Zach e Jeanne, muitíssimo mal trabalhada, não acrescentando nada de novo à trama. Fora isso, a relação dos amigos de duas classes sociais distintas, a arte, e o romance gay – ou seja, nada que já não tenhamos visto, só que trabalhado de forma diferente – ganham um novo fôlego, e elevam a história acima da linha da normalidade, posta na tela com sutileza e bom gosto.
Ao passo que a relação entre os protagonistas se edifica – não sem percalços – a família: Zach, Jeanne e Cody se destrói. A mais sólida visão de uma instituição familiar que temos no filme é descrita pela fórmula papai-papai-filhinho (Shaun, Zach e Cody), o extremo impensável de uma família nuclear básica, instituída desde que o homem se tornou sedentário. Markowitz, neste ponto, reconhece a não-eternidade dos relacionamentos, afirmando em certo momento do filme que “ninguém pertence a ninguém para sempre”, e acaba por retirar da escala da intimidade a junção dos dois jovens, fecundando mais a amizade e o respeito, do que aludindo a um casamento gay com direito a adoção de um garotinho. A quebra da estrutura familiar clássica para uma versão completamente diversa não é algo novo no cinema, mas do modo anti-casamento (percebam a verdadeira quebra de estrutura) como está posto aqui, é sim, algo novo.
A direção de Markowitz não inventa a roda cinematográfica, é uma simples exposição de fatos, com câmera na mão em alguns momentos, planos e ângulos vez ou outra impressionantes, mise-en-scène que às vezes tropeça na ocupação espacial, mas que ganha muitos pontos em junção com a direção de arte e fotografia, gerando uma aura (sub)urbana que se opõe à corrente e exaustiva criminalidade, gangues, rap e black music, roubos, tráfico, etc.
O roteiro é uma boa surpresa de relativo equilíbrio: é sensível e agressivo, não tem reviravoltas mágicas, nem saturação de personagens, tanto em número quanto em persona dramática. A música é de caráter rítmico em relação às imagens, uma bela aplicação de acompanhamento, mas pouco fecunda. A edição é uma boa surpresa narrativa, e chega a ter momentos de grande força fílmica e beleza, especialmente em algumas transições.
Shelter é um produto fílmico que entretém e encanta pela beleza de sua composição. Trabalha com um novo elemento familiar sem ressentir-se ou querer adaptar as “organizações comuns”, e expõe e entrelaça as relações de trabalho e compromisso, renúncia e escolha, respeito e amor. O título em inglês dá uma noção bem clara do ponto para onde tudo converge, e qual é o sentido do filme – sem comentários sobre o estúpido título em português.
Se havia alguma dúvida sobre os novos rumos das relações e organizações familiares em nosso século, que os conservadores coloquem suas barbas de molho: o cinema já consegue trabalhar a inversão sexual (Freud) de um modo próprio, novo, e que se supera se comparado às muitas ralações estabelecidas e carimbadas pelo aval de “normalidade” de nossa sociedade que definha, mas se recusa a olhar, respeitar ou reconhecer o “diferente”, que de diferente, não tem nada – o que impera em todos os desejos humanos e seus objetos é a vontade de ser feliz e estar bem com aquilo que se reservou para si, busca infinda, segundo o Existencialismo, seja ela para os grupos considerados maioria ou para as chamadas minorias sociais. No fim das contas, um abrigo (amplie essa palavra para todos os sentidos possíveis) é o que se pede, e é isso que paira no ar, após a tela se escurecer depois da última cena de Shelter.