10 de out. de 2010

Um Dia, Um Gato



por Luiz Santiago


     Os anos 1960 trouxeram para o cinema um criativo fôlego nas produções de todo o mundo. Do Japão a Cuba, as cinematografias nacionais (algo que Truffaut não acreditava existir, com exceção do Expressionismo Alemão, do cinema Revolucionário Soviético e do Neorrealismo Italiano), tornaram-se exemplos vigorosos de experimentação e alinhamento da política ao produto cinematográfico.

     Expressivos no mundo inteiro, os chamados “Cinemas Novos” constituíram um filão artístico muitíssimo representativo para a história da sétima arte. Além disso, as produções de caráter crítico tornaram-se comuns, e cada Continente teve um filme ou cineastas que se destacaram por obras que equilibravam poesia, experimentalismo e crítica social ou profunda análise da alma humana. Na República Tcheca, um dos melhores exemplos desse período é o filme Um Dia, Um Gato (1963), dirigido por Vojtech Jasny.


     A história se passa em um vilarejo que recebe uma comitiva circense, da qual fazem parte um mágico, um gato que usa óculos, e a própria Juventude. O tal gato possui poderes mágicos, e quando seus óculos são retirados, o felino passa a enxergar as pessoas pelas cores que lhes definem a personalidade: os mentirosos são roxos, os ladrões, cinzas; os falsos, amarelos e os apaixonados, vermelhos. Na primeira apresentação do mágico ao público do vilarejo, a Juventude retira os óculos do gato, e a plateia, espantada por ver as pessoas tingidas de diversas cores, foge do local. No pandemônio, o gato escapa. Caberá ao um professor local e sua turma da terceira série encontrar o animal antes que ele caia nas mãos de homens inescrupulosos do vilarejo.

     A obra traz consigo um ar inocente que jamais é encoberto pela crítica feita às aparências e o conservadorismo. Além disso, pode-se ver algo muito comum nas produções do Leste Europeu: o contato do homem com a materialidade, característica que acrescenta ao filme ares de conto de fadas, fábula, história infantil, aparência intensificada pela música, que, mesmo em excesso e não muito bem adequada em sua sequência de edição, encanta o espectador e finaliza o clima sobrenatural e bucólico de diversas cenas.


     A figura do professor-diretor do Colégio, única pessoa na cidade que tem licença para matar animais e mantém um museu de bicho empalhados, é a transposição do poder do Estado para a localidade. Com efeito, a personagem é a maior autoridade que vemos no filme, embora outros setores burocráticos e insinuações hierárquicas possam ser vistos no discurso de apresentação do filme, feito pela capelão do vilarejo, um imigrante grego de muitas histórias.

     Os efeitos especiais são um espetáculo à parte, e mesmo não se ajustando cem por cento ao contexto central da obra (aparecem “encaixados”), sua força diegética é tão grande, que convence o espectador mais rigoroso. A ideia da coloração das pessoas por sua personalidade foi uma ótima sacada do roteiro de Jirí Brdecka e do diretor, e é vista na tela com uma certa estranheza mas muita pertinência dramática. Deve-se levar em conta o período em que foi realizado o filme, e ver que a tecnologia usada para coloração ainda sofria por muitas mudanças, testes e adequações.

     Filmado alguns anos antes da Primavera de Praga, Um Dia, Um Gato também expõe os setores políticos, principalmente a sua ausência do cotidiano, tendo lugar expressivo a fiscalização e sua corrupção e os “poderes locais”. A “Revolução” que se dá no filme não usa a força ou derruba o sistema de produção do vilarejo, mas expõe publicamente os defeitos e os erros dos habitantes, até mesmo do professor-diretor, embora este não os assuma e se limite a ressaltar a nobreza e o impacto das confissões de outros camaradas – algo semelhante podemos ver em Por um fio (Joel Schumacer, 2002).

     A “Revolução”, no filme, é empreendida pelas crianças, que desaparecem, em protesto ao sumiço do gato que elas sabiam estar nas mãos de pessoas que não queriam bem ao animal. As cenas de busca que precedem a “desobediência civil” das crianças, é uma das coisas mais belas já vistas no cinema, com sequências filmadas numa floresta local contendo ingredientes que vão do humor à poesia visual. O filme também tem cenas musicais, danças, pinturas de gatos em cartazes, e referências metalinguísticas.


     Um Dia, Um Gato é um filme simples em sua forma, uma crônica muito bem contada (inclusive pela opção de usar um narrador que se dirige à câmera, fazendo do espectador um cúmplice ansioso pela história que conta) e plasmada com imensa docilidade na grande tela, um exemplo quase fantástico (por que não?) das muitas obras nada comuns surgidas em seu tempo.


UM DIA, UM GATO (Az prijde kocour, República Tcheca, 1963).
Direção: Vojtech Jasny
Elenco: Václav Babka, Jirina Bohdalová, Pavel Brodsky, Vlastimil Brodsky, Vlasta Chramqstová.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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