16 de nov. de 2010

Dias de Ira



por Luiz Santiago


     Nove de abril de 1940. Como parte da Operação Weserübung, as tropas alemãs invadiram a Dinamarca a partir do porto de Copenhague. Em duas horas, o rei Christian X e sua base de governo assinaram a colaboração com os nazistas, e estabeleceram um acordo diplomático que deixava ao governo dinamarquês sua supremacia e governabilidade, fator decisivo para a permanência dos judeus no país durante a ocupação (1940 – 1945).

     Três anos depois, um filme dinamarquês viria incomodar as relações entre os dois países, evento que culminou com o exílio do cineasta Carl Theodor Dreyer, diretor de Dias de Ira (1943), obra que faz alusões à ocupação nazista. Em seu exílio na Suécia, Dreyer permaneceria até o fim da Segunda Guerra Mundial.

     Carl Theodor Dreyer foi educado sob a severidade dos dogmas luteranos, o que constatamos ser a linha temática central de sua produção cinematográfica. Em seu primeiro filme, O Presidente (1919), já se vê o rigor cênico e a opção pela naturalidade de expressão (que abolia completamente o uso de maquiagem, algo que Dreyer verificava pessoalmente nos protagonistas). O cineasta acreditava que os atores deveriam comunicar-se com o público através dos olhares e das expressões típicas da psicologia de suas personagens.

     Com o tendenciosamente expressionista Mikael (1924), o dinamarquês confirmou a sua genialidade de composição cênica, cuja coroação mundial viria com O Martírio de Joana D'Arc (1928), marco inquestionável do cinema mudo. Mas partir dessa obra, diversas dificuldades de produção acalentadas pelas histórias de extremo rigor que o cineasta tinha ao dirigir seus filmes, tornaram o restante de sua carreira pouco prolífica, com um filme por década (!): O Vampiro (1932), Dias de Ira (1943), A Palavra (1955) e Gertrud (1964), seu último filme.


     A obra que rendeu o exílio a Dreyer, Dias de Ira, é uma alegoria à ocupação nazista, mas com uma história ambientada no ano de 1623. O diretor fez a mesma opção que Sergei Eisenstein fizera, quando expôs o medo de uma futura invasão nazista à URSS, e deu a Stálin a figuração de um herói nacional em Alexander Nevsky (1938)¹.

     Em plena Idade Moderna da Inquisição, Dreyer visita o imaginário popular e trabalha com a crise da fé e a relação da igreja e do povo com o paganismo². Uma forte dose de subjetividade mistura-se à trama realista, e o desfecho da obra pode ser tanto a afirmação quanto a negação das premissas levantadas durante o filme.

     O drama teatral (inclusive, adaptação de uma peça) é simples: um pastor casa-se com uma mulher muito mais jovem que ele. O filho de seu casamento anterior, chega à casa, depois de uma viagem. Inevitavelmente, o jovem apaixona-se pela madrasta, no que é prontamente correspondido. A matriarca, mãe do pastor Absalon, percebe o amor proibido, e o ódio pela nora aumenta ainda mais, tendo seu clímax no momento em que denuncia a adúltera para o clero, afirmando que a nora é uma bruxa que se comunica com os mortos e pode sugerir a morte de alguém. Paralela a história principal, a execução de uma ré acusada de bruxaria e a morte de um pastor, fecham dramaticamente o espaço cênico e histórico escolhidos pelo cineasta.


     A verossimilhança com a qual Dreyer plasma a realidade da Inquisição é quase inacreditável, especialmente no tocante à fotografia, que traz para a tela, a atmosfera de um quadro de Rembrandt. Em uma sequência inesquecível, a câmera varre em panorâmica semicircular o sala do “interrogatório”, mostrando-nos os clérigos em crescente atenção pela tortura da velha senhora acusada. Parece-nos que as personagens da pintura flamenca do século XVII, saíram das molduras e ganharam vida em tela grande. O forte contraste entre as vestes pretas e os colarinhos brancos bordados, o uso da luz focal no rosto dos protagonistas, o escurecimento dos “espaços mortos” ou a delicada profundidade de campo, mostram a proximidade da composição plástica de Dreyer com a da organização espacial e cromática (guardadas as devidas proporções para o P&B) de Rembrandt. Em cenas muito raras e todas em tomadas externas, a ambientação plenamente iluminada, típica de Veemer, compõe o retângulo da tela por um breve momento.

     A decupagem interna de Dias de Ira, vinda das artes plásticas, é responsável por um choque no uso de planos e movimentos de câmera, e ainda, pela incômoda lentidão da narrativa. É lícito, portanto, afirmar que Dreyer tropeça no tempo, mas ganha em estruturação do espaço e conteúdo da obra, além da sustentação do drama. Essa disparidade não retira a força nem a beleza de Dias de Ira, que à época, foi muitíssimo mal recebido. A salvação crítica veio em 1947, em um texto de André Bazin que traz à tona o verdadeiro valor dessa obra única do cinema nórdico e mundial.


     O contexto religioso, composto pela profecia do “dia da ira de Deus” e por um pretenso racionalismo, é puramente baseado na filosofia de Sören Kierkegaard (também dinamarquês), à qual Dreyer voltaria em A Palavra (1955)³. Em Dias de Ira, não apenas a angústia do indivíduo frente à onipotência de um divino sempre em silêncio é retratada, mas também o uso da fé para exterminar o mal, de um modo que em qualquer outra situação seria um crime, mas ao se tratar de uma realização cristã de purificação da alma, alcança patamar de ação santificadora. Kierkegaard traz em Temor e Tremor (1843), uma reflexão a respeito:


Eu me proponho agora extrair da história de Abraão, sob forma de problema, a sua dialética; para ver a fé como inaudito paradoxo capaz de transformar um delito em um ato santo e agradável a Deus, paradoxo que envolve a Abraão o seu filho, paradoxo que nenhum raciocínio pode dominar, porque a fé começa exatamente lá, onde a razão termina.


     Essa dualidade entre o sacrifício em nome de Deus e o delito em nome dos homens, parece estreitar-se em cada linha dos diálogos pronunciados sempre em voz baixa e com uma contenção simplesmente aterradora. Acima de tudo, Dias de Ira é um filme sacro-poeticamente brutal.

     Todo o conteúdo da obra parece dar-se em território sagrado, tal a precisão do cenário clerical, dos corredores assombrosos da capela, da atitude rígida e nada afetada das personagens. A única oposição a esse todo enxuto de rústica simplicidade, é a segunda sequência do filme, na casa da primeira bruxa denunciada. Um pouco de Diego Velázquez em seu período sevilhano faz-se presente aí, com a lareira ardendo, os planos divididos entre objetos e pessoas, a exposição do cotidiano até então despreocupado: um instantâneo da vida simples. Depois, entre a pompa e a limpa simplicidade monástica, o filme retratará, sob forte luz, a vida do pastor e sua família.


     A wagneriana música de Poul Schierbeck ao lado da economia e presteza no uso do som (Dreyer vem do cinema mudo, daí o seu requinte em usar ruídos e dar calculado volume às vozes), finalizam muitíssimo bem o produto fílmico. Não falta nada, nem aos olhos, nem aos ouvidos.

     Se o ritmo propositalmente muito lento de Dias de Ira cansa o espectador, sua intensidade dramática e o aprimorado uso técnico compensam o imóvel tempo. A pluralidade autoral do filme que seguiu ao icônico O Vampiro, traz os elementos típicos do terror ali trabalhados e o impactante uso dos primeiros planos em rostos aflitos como em O Martírio de Joana D'Arc. Deus, a punição do homem a crimes invisíveis, o questionamento da existência ou não da maldade sobrenatural e o desejo reprimido, são postos em cena de uma maneira poética, que preza pelo rigor visual do ângulo e a beleza da composição do plano. Se não é uma inquestionável obra-prima de Dreyer, como A Palavra, Dias de Ira está entre aqueles filmes-limbo, películas valiosíssimas, mas que trazem consigo a inquietante capacidade de não serem admiradas por todos, e nem agradar completamente.


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1 - A mesma opção se repetiria com Eisenstein em 1944 e 1946, nos dois volumes de Ivan, o Terível, duas alegorias diferentes de Stálin (o Nevsky-Herói em formação, e o Ivan-Totalitário traidor da Revolução).

2 – Como Bergman faria em A Fonte da Donzela (1960).

3 - Ao lado de Luz de Inverno (Ingmar Bergman, 1962), o mais puramente kierkegaardiano filme já realizado.


* Artigo dedicado ao meu amigo Marcos Alexandre, designer gráfico que me ajudou na pesquisa para o artigo.


DIAS DE IRA (Vredens Dag, Dinamarca, 1943).
Direção: Carl Theodor Dreyer.
ElencoThorkild RooseLisbeth MovinSigrid NeilendamPreben Lerdorff-RyeAlbert HoebergOlaf UssingAnna SvierkierHarald HolstSigurd Berg.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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