2 de ago. de 2010

Dorminhoco



por Luiz Santiago


   Podemos encerrar entre Um assaltante bem trapalhão (1969) e A última noite de Boris Grushenko (1975), a primeira fase da carreira de Woody Allen - embora este último filme fuja bastante do estilo piada-piada-piada, tendo em Dostoiévski e na Era Napoleônica, sua base de humor.

   Os primeiros filmes de Allen, a que nos referimos, (além dos dois já citados: Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo* mas tinha medo de perguntar (1972) e Dorminhoco, de 1973), conservam muito do material e do modo de conduzir um texto, vindos de sua pregressa carreira como comediante stand-up. São obras extremamente hilárias, muitas vezes surreais, com dezenas de gags inteligentes e levemente preocupados com algo que não seja o riso – talvez, com exceção de Boris Grushenko, que aliás, o título original é Love and Death.

   Dorminhoco (1973), o terceiro filme de Woody Allen, é, digamos, um divisor de águas. Neste filme, observamos uma preocupação estética maior que a dos filmes anteriores – preocupação já aludida em Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo..., principalmente na “sequência Antonioni” ou “Italiana”, mas em Dorminhoco, essa preocupação não se estende a um esquete isolado, ou a um momento específico. Entendemos que a partir dessa obra, Woody Allen alcança a sua primeira evidência de maturidade estética como cineasta (pontualmente em relação ao cenário) – e que aperfeiçoaria a partir de então, vide o seu filme seguinte.

   Dorminhoco conta a história de Miles Monroe (Woody Allen), que, preservado por um processo criogênico, acorda 200 anos depois de ter dado entrada em um hospital, para um simples processo cirúrgico. Na sociedade visivelmente fascista onde acorda, Miles conhece e se apaixona pela poeta Luna (Diane Keaton), a quem é apresentado, confundidamente, como um robô doméstico. O governo então dá caça ao “forasteiro de outro tempo”, ao passo que um grupo de resistência marxista prepara a revolução contra o poder instituído. Miles e Luna, depois de diversos obstáculos por parte dela, que era “escritora oficial”, estão a serviço da revolução, e pretendem acabar com o único órgão ainda existente do ditador do país: o nariz. O texto, assinado por Allen e Marshall Brickman, apresenta uma hilária e nonsense relação com a história, principalmente com Karl Marx e o conceito de “revolucionário” (tema já abordado por Allen em Bananas).



   Alguns elementos que são recorrentes nos filmes do diretor já se apresentam aqui: a contestação da fé em Deus, o descrédito na política, e a intrigada relação com o amor, bem visíveis no último diálogo entre os protagonistas:


LUNA: Você não acredita na ciência. E também não acredita que sistemas políticos funcionem. E você não acredita em Deus.
MILES: Certo.
LUNA: Então, no que acredita?
MILES: No sexo e na morte. Duas coisas que acontecem apenas uma vez na vida. Mas pelo menos depois da morte você não fica enjoado.


   As situações equilibram ironia, conceitos intelectuais, e riso. Woody Allen toma um cuidado especial na apresentação dos personagens principais: ele, como Miles, vai aparecendo aos poucos, ao passo que os médicos retiram o papel alumínio que lhe cobria o rosto. Quando ainda coberto, já percebemos o contorno dos óculos, e para quem o conhece, já está definida a figura de dali sairá. Diane Keaton, como Luna, aparece pela primeira vez com uma máscara facial verde que lhe cobre todo o rosto, e contrasta com a toalha clara amarrada na cabeça e a roupa branca que usa.

   As apresentações das personagens são como a “alma” da personagem para o diretor, por isso, o cuidado com a sua entrada em cena. Essa preocupação se estende por toda a filmografia do mestre norte-americano, e vale citar o instigante exemplo da apresentação de Scarlett Johansson em Match Point (2005).



   A atuação de Allen é o ponto central do filme, uma espécie de motor-gerador que impulsiona todos ao seu redor. Diane Keaton se encaixa perfeitamente nesse mundo woodyano, e toda sua experiência no teatro é vista na tela com a harmonia com que conduz Luna através da trama. Vale destacar as diferentes personalidades que ela representa: a poeta fascista, a foragida, a revolucionária, a apaixonada.

   A música de Dorminhoco é uma surpresa, em se tratando de filmes futuristas. Nos anos 1970, era tradição usar um sintetizador para os temas principais, em enredos que se passassem muitos anos no futuro. Woody Allen, como sempre, preferiu o jazz. E muito particularmente “o seu” jazz. A música da película é composta e tocada pelo próprio Allen, e sua banda, The Preservation Hall Jazz Band, acompanhados pela The New Orleans Funeral Ragtime Orchestra. O resultado é um clima chapliniano que em alguns momentos (dada a “seriedade” da cena) chega a incomodar, de tão alegre ou apavorante. Atenção especial para os incríveis solos de clarinete e trompete.

   Contando com montagem de Ralph Rosemblun (colaborador até Interiores, 1978) e com um aperfeiçoamento em seu modo de dirigir filmes, Woody Allen consegue um produto final que agrada a públicos diversos (porque é diverso) e faz lembrar a atmosfera de alguns filmes de Chaplin e Keaton. O filme é uma sátira ao mundo mecanizado e a acomodação das pessoas frente à tecnologia que as domina e deserotiza (o sexo é feito em uma máquina, uma pequena cabine, e o prazer é tido através de um orbe metálico).


   Dorminhoco não peca por excessos, nem por falta. É um excelente relato cômico em medida certa sobre adaptação (ou não) às máquinas, à era robotizada – um libelo do diretor contra a tecnologia, com que não lida nada bem. O filme foi um grande sucesso de público, e obteve nos Estados Unidos, US$18 milhões, apenas na semana após o lançamento, em 17 de dezembro de 1973. Dorminhoco é um marco, tanto estético quanto conceitual na carreira de Woody Allen.


DORMINHOCO (Sleeper, EUA, 1973).
Direção: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, John Beck, Mary Gregory, Don Keefer, John McLiam, Bartlett Robinson, Chris Forbes, Mews Small, Peter Hobbs, Susan Miller, Lou Picetti.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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