4 de ago. de 2010

Vicky Cristina Barcelona



por Luiz Santiago:


   Vicky Cristina Barcelona (2008), o quarto filme de Woody Allen feito na Europa, foi recebido com entusiasmo por boa parte da crítica mundial, embora alguns poucos não tenham visto nada nessa obra, além de “reproduções já manjadas do mundo de Allen”. Vai a pergunta: que cineasta contemporâneo, vivo, com uma carreira de 40 anos, e lançando um bom filme por ano desde 1983, consegue ser tão antenado a tudo o que acontece à sua volta, ser crítico em relação a esse “tudo”, e, apesar de transparecer-se moralista, ser na verdade, um grande cínico em celuloide? Woody Allen é um elemento à parte no mundo cinematográfico do nosso século, um “cineasta da vida e do mundo”, temas que se embatem em Vicky Cristina Barcelona.

   O filme conta a história de duas amigas estadunidenses, Vicky e Cristina, que vão passar o verão em Barcelona – a cidade é a terceira mulher da trama. O impulso dramático se dá em um jantar após uma exposição de arte que as amigas visitam. Juan Antonio, um voluptuoso e nada formal pintor espanhol, convida a dupla para ir até Oviedo, tomar um bom vinho, e fazer sexo. A trama se desenrola perante a indecisão existencial de Cristina, a opressão matrimonial-social de Vicky, o carpe diem de Juan Antonio e as neuróticas alterações comportamentais e sentimentais de Maria Elena.

   Woody Allen acerta de mão cheia no roteiro ácido e irônico. A presença do narrador como um guia de turismo (territorial e sentimental) marca pontualmente momentos da vida de uma e outra personagem, justamente como se pede o cardápio fragmentado do nosso século. O roteiro apresenta, junto ao narrador, diversas quebras temporais, uma delas, entre Vicky e seu noivo, um homem politicamente correto que se contenta com o “sexo vazio” do dia-a-dia (vide o "empty sex” que Vicky, muito familiarmente, comenta em conversa indignada em Oviedo), com o bom salário que recebe, e com suas grandiosas preocupações: em que lugar seria melhor comprar uma casa nova, o resultado do jogo de basebol, e o casamento para ostentação social, tudo tal qual o figurino da bem educada New York. Woody Allen satiriza o sonho americano, que é apenas a pura máscara que se vê no filme: uma chatice inestimável, que de tão ridícula, é olhada por quem a louva ou a vive, como sendo irreal.



   O narrador nos arrasta para as conquistas momentâneas de Cristina, uma jovem completamente perdida em seu vazio interior, e que não sabe o que fazer, nem como profissão. Com primazia, o diretor constrói e desconstrói o mundo intelectual dessa personagem, que se enquadra em qualquer espaço não-conservador. Em outra medida, o american way of life é destronado diversas vezes, como por exemplo, a cena em que Maria Elena pede para que Cristina fale alguma palavra em chinês, já que esta confessara achar esse idioma muito bonito. A pergunta após a palavra dita, é a chave para a crítica: “Você acha isso bonito?” Ou a cena em que Vicky, ao dizer que seu tema de estudo era a identidade catalã, recebe a pergunta que só um crítico como Woody Allen poderia fazer ao pseudo-intelectualismo ou ao utilitarismo de nossos tempos: “O que você vai fazer com isso?”. Acrescida ao roteiro está a irreverência de uma mulher inteligente, porém imatura e desequilibrada, a personagem de Penélope Cruz (que aparece descabelada, com a maquiagem borrada, e as belas pernas muito bem a vista). Mesmo nesse cultuado padrão cultural europeu, há, impresso, o sarcasmo de Woody Allen: a tênue linha dos relacionamentos de celebridades e intelectuais, o plágio, a poesia não publicada – gérmen de superioridade europeia? - as confusões idiomáticas - “In english, Maria Elena, in english!”, e a mediocridade do mundo capitalista, principalmente dos que possuem muito dinheiro, ou se casam para mantê-lo.

   A música de abertura (um hino à cidade), e os violões que embalam o filme, não são meros adornos ou um retoque exótico catalão dado à obra. É então que me enerva ouvir dizer que o diretor “perdeu o brilhantismo dos anos 70”, e por aí vai... O andamento do roteiro com a suavidade ou o allegro da música compõem o quadro emocional do espectador: as músicas seguem um ritmo cíclico, desde as panorâmicas sobre a cidade, e as viagens, aos planos longos em diálogos, e cenas românticas ou sentimentais, onde se podem ouvir os os violões catalães.

   A fotografia de Javier Aguirresarobe (que tem no currículo obras como Os Outros (2001) e Fale com Ela, 2002), é outra revelação do filme, pelo uso frequente de iluminação natural e de um tonel de cores-ambiente: o filme se torna um poema-realidade, posto que se adequa, em diversas formas, ao mundo no qual o espectador acabou de ver, antes de entrar na sala de cinema, só que mais bem “temperado”.


   Scarllet Johansson assume uma postura forçada e teatral, como alguém que precisa saber como interpretar, justamente o que sente sua personagem em constante procura, que ao fim, não encontra o que sempre procurou e continua, insistentemente, a procurar. Javier Bardem tem a faceta do macho latino, só que muito mais... digamos... inteligente. Sabe ser sentimental, grosseiro, sexy, artista. É o único homem realmente tratado como tal, no filme. Os outros dois (Doug, o noivo de Vicky; e Mark, o esposo de sua amiga Judy) são bonequinhos do sistema social em que vivem. Suas mulheres, ao contrário, mandam a sociedade às favas e cotam alto o preço para uma atitude hedonista. Penélope Cruz deslumbra talento. Sua atitude jogada, descuidada de si, à toa com o mundo, é o retrato de alguém que, sequelado pela vida, só tem em mente o descrédito, um alto fervor de espírito apolíneo.

   A arquitetura de Gaudí é mostrada junto às belas ruas e as limpas prostitutas da cidade, que são o cenário de uma Barcelona para os endinheirados. É esse o mundo que Woody Allen destrói com ácidas críticas, em seu filme. Se o espectador espera ver a Barcelona suja, as prostitutas feias, o subúrbio, é melhor que assista Albergue Espanhol. O filme está repleto de citações turísticas. É um road-movie de um diretor que adentrou muito bem ao século XXI, e que entende a realidade deste novo século, pondo o Velho Mundo (a Europa dos valores liberais) e o Novo Mundo (a América dos valores conservadores) frente a frente, embora no meio da trama eses valores se misturem.

   Vicky Cristina Barcelona é uma obra de cunho social, feita para olhar o cinema não apenas como um “entretenimento no qual o espectador deve se encontrar, realizar-se feliz e entender tudo, por ser bem explicado”. É um filme sexy e crítico, para quem costuma pensar na existência, um filme para quem não precisa rotular a vida, uma pérola do cinema, escrita e dirigida por um de seus grandes gênios.


VICKY CRISTINA BARCELONA (Espanha, USA, 2008).
Direção: Woody Allen
Elenco: Rebecca Hall, Penélope Cruz, Scarlett Johansson, Javier Bardem, Patricia Clarkson, Chris Messina, Kevin Dunn, Julio Perillán, Juan Quesada, Josep Maria Domenèch.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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