23 de jul. de 2011

A História Soviética



por Luiz Santiago


     O documentário que dá título a esse texto é o tipo de filme que eu, por educação acadêmica, pensamento político e questões morais, deveria odiar. O cunho ideológico direitista que exala do roteiro nos primeiros dez minutos do filme é de fazer doer a alma de qualquer historiador marxista ou de um conhecedor mais atento às tendências políticas do século XIX para cá. O teor político adotado pelo diretor Edvins Snore é contaminado pelo espetáculo ideológico anglo-franco-americano, e devo dizer que boa parte de seu discurso é, no mínimo, descartável e desprezível, de tão tendencioso.

     Mas, posições políticas à parte, tomo A História Soviética (2008) como produto passível de crítica e como material fílmico, e a partir daí tenho em mão algo diferente, um filme que, ao ser visto por um grupo de pessoas dispostas a discutir o tema, pode trazer à tona tanto conhecimento quanto divergências saudáveis e, infelizmente, adormecidas pela onda apaziguadora dos crimes da antiga URSS. Com o apelo global gerado pelo capitalismo e o andamento dessa sociedade paradoxalmente feliz e hiperconsumista (trazendo duas boas definições de Gilles Lipovetsky), o comodismo político parece ser o estágio de ordem de boa parte da população mundial hoje. O engajamento político foi trocado pelo cartão de crédito e não raramente um discurso de tendência fascista brota das classes mais abastadas, seja através de seus cidadãos, seja através de seus representantes. Por esses e dezenas de outros motivos, falar mal do stalinismo ou trazer espinhos à organização política e social da antiga URSS causa um tremendo mal-estar nos dois pólos: de um lado, a defesa de que “não havia outra alternativa naquele momento da história”; do outro, a repetição de uma autodefesa há muito erodida: “esses documentos são falsos”, “nós nunca fizemos isso”, “essas são acusações imperialistas”, etc.


     Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. A União Soviética foi sim, um projeto de Estado a que se acreditar com efusividade, dada a paupérrima, massacrante e alienada estrutura da era czarista. A proposta inicial, passando pelos estágios vindos das teorias de Marx e Engels, era teoricamente boa, mas sua execução, desde o começo, saiu dos trilhos e seguiu descarrilada por pouco mais de 70 anos. Não vamos tocar no cerne da Revolução, pois, embora eu seja mais próximo do pacifismo do que do belicismo, paradoxalmente, não acredito em uma Revolução político-social sem armas. Nenhum dos países que trouxeram quaisquer lutas por seus direitos isentaram-se de lançar mãos de armas, e até os hindus à época de Gandhi, embora não recebessem a aprovação de sue mentor, em um momento ou outro partiram armados para cima dos ingleses. Dito isto, estamos frente à primeira colocação polêmica e contestável do documentário. Um dos entrevistados afirma que “qualquer lugar onde o socialismo se solidificou, 10% da população foi exterminada”. Dito assim, o sistema parece meio caminho para o genocídio, quando sabemos não ser verdade. E em relação a isso, qualquer conhecedor crítico da história dos últimos três séculos diria que tanto um lado quanto o outro são exterminadores, matam (ou mataram) para se estabelecer como autoridade jurídica, política, etc.

     Outra coisa que chama a atenção é que a leitura feita pelo diretor de toda a teoria marxista  é tortuosa, incompleta e de má-fé. A tendência centralizadora vinda de alguns textos marxistas já foi discutida por historiadores e filósofos contemporâneos, entre os quais destaco Georg Lukács e Eric Hobsbawm, e mesmo assim, o autoritarismo exercido por Stálin e sua herança política identificada em Kruschev (embora esse a negasse, inclusive com a bandeira da “desestalinização”) e mais abertamente em Leonid Brejnev, é o resultado de mais uma leitura política mal realizada, como em tantos exemplos das ciências humanas, exatas e biológicas. Há quem leia Darwin de maneira errada e afirme que “o homem veio do macaco”; há quem conteste Einstein; e há quem veja no socialismo a obrigatoriedade de um Gulag ou do extermínio de mais de 20 milhões de pessoas: isso não significa que o socialismo é, por sua constituição teórica, um sistema assassino. Os líderes que dele se utilizaram é quem fizeram-no assim – como no caso do capitalismo, inclusive.


     Mas depois de um período de projeção, somos apresentados a alguns questionamentos tão legítimos, que optamos por descartar a abominável parte inicial do filme e nos atermos ao que ele traz de novo, mesmo que ainda em uma narrativa que condena o seu objeto de crítica. Quando o foco é transferido para a NKVD e sua ligação com as SS, e da URSS com a Alemanha (embora o tiro desse pacto germano-soviético tenha saído pela culatra), temos algo mais aceitável a que se apegar. O documentário deixa de ser odioso para ser aceitável, e termina quase humanitário, valendo, e muito, a sessão.

     Dentro do plano técnico, as animações e montagem ágeis e a narração no estilo de jornalismo televisivo ajudam, para bem ou para mal, a compreensão do espectador. Tendo em mente que toda produção artística e principalmente propagandista tem objetivos fixos, um documentário como A História Soviética não deveria causar tanto espanto ou polêmica. No mínimo, o filme deveria ser um gerador de questionamentos, um núcleo para aprofundamento de pesquisa e comparação das muitas visões da História. Vejo-o como um documentário dotado de muitos defeitos e muitas qualidades, como qualquer outra produção. Taxá-lo de imperialista, tendencioso ou qualquer outro adjetivo político seria “chover no molhado”, pois não existe documentário político que não seja tudo isso. Nem os aparentemente (e geniais) filmes de Costa-Gavras escapam a essa tendência. Estamos falando de produção engajada, não de um jogo enciclopédico. Se alguém investe dinheiro e tempo para fazer um filme desse porte, certamente possui ideias próprias, e quer vê-las veiculadas no filme. Desprezar e querer encontrar uma visão unívoca dos fatos ou acusar os lados políticos de serem pior que o outro (ou parecidos) é uma atitude no mínimo desnecessária, e que não condiz com o nível de intelecto necessário para ver, processar, entender e discutir um filme como A História Soviética.


Para os também estudiosos do tema, meus grandes amigos Marcel Moreno e Pedro Veblen.


A HISTÓRIA SOVIÉTICA (The Soviet Story, Letônia, 2008)
Direção: Edvins Snore
Roteiro: Edvins Snore



FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.


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