25 de mai. de 2011

Vozes Espirituais - Parte III



por Luiz Santiago


     Observar uma guerra, como nos propõe Sokúrov através de seu extenso documentário Vozes Espirituais (1995), é lutar contra o tempo. Em um campo de batalha, tanto os soldados quanto os que estão de fora e os observam (caso específico do diretor e do espectador, em níveis diferentes de observação) lidam com a possibilidade do perigo e o tédio das horas que se arrastam. Pior que uma guerra – onde a luta pela vida consome o tempo – é um regimento que não enfrenta nenhum batalha. O tempo vago é preenchido com pensamentos sobre uma terra natal distante, distrações quase infantis e alumbramento com as coisas mais simples, como ouvir uma música em um rádio. Um dia sem batalha em um campo de batalha é o tema desse terceiro episódio de Vozes Espirituais, e aqui Sokúrov nos apresenta, além do tédio, o comportamento dos soldados.

     Uma das primeiras coisas que se destacam nessa terceira parte, é o movimento em cena. Tudo se move nesse episódio: a câmera – seja na mudança de ângulo seja através da montagem –, os soldados, a atmosfera física. Um dia de sol transforma-se, no final da tarde, em um prenúncio de tempestade, com um céu amedrontador cheio de relâmpagos e trovões. Em meio a essa mudança de tempo, o diretor filma as ocupações dos soldados no topo de um monte, de onde observam a região da fronteira em conflito. O treinamento de tiros, as conversas sobre armadilhas, a leitura de livros, a preocupação com a alimentação, o banho, o medo da tempestade, tudo é motivo para a câmera atenta de Aleksandr Burov captar e investigar. E junto a esses movimentos ociosos, a ligação dos soldados com o espaço em volta, reaparece. Corpos perdidos em meio a um vasto campo, o regimento no alto da colina, minimizado pelo céu escuro e a imensidão da verde vegetação já são quase integrantes da natureza, como o gafanhoto gigante e a tartaruga que se movimentam no espaço dos soldados, tudo nos remetendo a essa ligação do homem com a vida.


     A existência, observada desse ângulo, parece demasiadamente desperdiçada pelos homens. Tal visão de guerra só me lembro ter visto no excelente Além da Linha Vermelha (1998), de Terrence Mallick. As necessidades primárias do homem, a sua humanidade, contrastam com a destruição bélica patriotista a que se entregam. Nesse episódio, até as observações pessoais de Sokúrov revelam o amargor dessa visão, um estranho sentimento de culpa por estar ali e não poder alterar em nada aquela situação, apenas observá-la.

     Esse terceiro episódio é uma das melhores partes de Vozes Espirituais, e explora a observação do soldado fora da guerra, embora esteja no campo de batalha. O caráter oficial é despido e a máscara de cidadão comum, cheio de medos e vontades, revela-se. Embora não seja um olhar novo, tendo já o cinema através de Jean Renoir e Stanley Kubrick adentrado a esse campo de visão humanitário em meio ao conflito, Sokúrov nos traz um novo fôlego, pouco analítico e mais puramente observacional. Permanece aqui caráter “homem e espaço geográfico”, trabalhado no episódio anterior, mas a câmera vai além do espaço externo, investigando a alma e os corações.


VOZES ESPIRITUAIS – 3ª Parte (Dukhovnye Golosa, Rússia, 1995).
Direção: Aleksandr Sokúrov
Câmera: Aleksandr Burov
Som: Sergei Moshkov
Música: Toru Takemitsu
Elenco: Soldados russos, Aleksandr Sokúrov (narrador).

AVALIAÇÃO DESSA PARTE DO FILME: ÓTIMO.

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