23 de abr. de 2011

Alice de Woody Allen



por Luiz Santiago


     Talvez o mais belo filme contemporâneo de Woody Allen, Simplesmente Alice (1990) é um ode à mulher moderna, suas escolhas de vida e sua independência. A polêmica década de Woody Allen iniciou-se com um filme visualmente arrebatador, forte e simples ao mesmo tempo, que recebeu indicações para o Oscar de Melhor Roteiro, para o César de Melhor Filme Estrangeiro e para o Globo de Ouro de Melhor Atriz (Mia Farrow). O filme marca o início das experimentações de Woody Allen com a câmera e a fotografia, um período de maior liberdade de captação e ousadia no trato com os elementos visuais, alcançando o seu ponto máximo dali a dois anos com Maridos e Esposas (1992), filme em que o diretor optou pela câmera na mão e cortes secos e bruscos entre as sequências, além de uma série de outras realizações nada convencionais.

     Simplesmente Alice conta a história de uma rica dona de casa católica e muito pudica, que se vê atraída por um homem que mal conhece. A aparente estabilidade de seu casamento sofre os primeiros abalos e as soluções paralelas não demoram a aparecer. Entra em cena o Dr. Yang e suas ervas milagrosas, os conselhos de uma amiga falsa, as conversas com um fantasma, a busca por um emprego de roteirista na televisão e o contato deslumbrado com a Madre Teresa de Calcutá. O filme trata de uma busca contínua por satisfação pessoal em meio às muitas obrigações que uma mãe de família deve ter. A personagem principal do filme, assim como no livro de Carroll, entra em um mundo de estranhas maravilhas, um lugar aparentemente muito belo mas que traz consigo complicações até então desconhecidas.


     Alice descobre que muito além de seu programa de beleza para o marido, cartões e crédito e massagens semanais, há um mundo onde ela pode sentir-se realizada, onde o prazer não é tido como culpa e sim louvado como uma boa parte da existência. Nessa descoberta de si mesma e do universo ao seu redor, a protagonista desenterra fantasmas familiares do passado, mágoas e desencontros mal escondidos que agora encontram uma estranha relevância em sua vida.

     Tendo surgido após três filmes cujos dramas familiares são o centro da história, não tinha como Simplesmente Alice vir “solto” em relação à importância da família. Mas aqui, Woody Allen já ensaia uma libertação. Embora em campo fechado e aparentemente como uma realização pessoal da personagem, a instituição familiar ganha um peso menor, a importância do casamento é quase anulada, a satisfação pessoal alcança o seu ápice, sobrepõe-se ao dinheiro e ao status social. De fato, Simplesmente Alice é um filme de descobertas de libertação pessoais. A filha mimada que idolatrava a mãe e odiava a irmã descobre as origens de seus sentimentos, percebe que a mãe não era tudo o que imaginava, enxerga o altar imaculado que construíra para exibir seus pais puramente ideais enquanto eles eram apenas humanos cheios de erros assim como ela. Alice cresce durante o filme. O amor e a amizade ganham um novo significado, e ela percebe nesse mundo, as aparências tem muito mais importância do que a verdade sobre as pessoas.


     Tanto o conflito conjugal quanto a fé ganham nova roupagem nesse filme. O diretor coloca-se exclusivamente no lugar da protagonista, e todas as suas frustrações em relação à vida, à igreja e ao casamento são sentidas durante a projeção, não aparecem como condição pré-definida, a exemplo dos filmes anteriores. Aqui, acompanhamos a formação do pensamento woodyano, percebemos não só a evolução do descrédito aos ícones sociais mas também os motivos do sofrimento pessoal e os jogos maldosos que a vida aplica às pessoas. Parece um filme sobre o por quê das coisas, mas não é.

     A fotografia abarrotada de cores quentes (mais uma vez a cargo de Carlo Di Palma) e os cenários pomposos de Santo Loquasto abrigam essa história sensível e emancipadora. O vermelho e o amarelo são cores recorrentes, e os cômodos da casa parecem flutuar em algumas sequências, tal é a perfeição do ângulo e da iluminação focal. Os efeitos visuais como os desaparecimentos, o uso dinâmico da iluminação como motivo de mudança espacial metafórica (em perfeita sincronia com o som, ambientando até em off os cenários sugeridos pela objetiva) e o belíssimo figurino de Jeffrey Kurland fecham com chave de ouro a equipe técnica responsável pelo visual agradabilíssimo da obra. A edição mais suave e sempre em continuação de Susan E. Morse alterna muito bem os vários espaços em que a história acontece, mantendo um tempo seguro de duração em cada um deles e interligando-os de maneira precisa e significativa.


     Doce e terno, Simplesmente Alice é um filme sobre as escolhas e as consequências, sobre a liberdade, sobre a aprendizagem pessoal em relação às cosias da vida. No fim, Alice não tem nada material para ostentar, mas por outro lado, sua satisfação pessoal e a daqueles que ela ama é motivo para comentários. Ela é uma nova mulher, seu País das Maravilhas revelou-se medonho mas cheio de espaços calmos para um repouso de felicidade ao menos momentâneo, e eis aí o grande aprendizado de Alice: a vida não é uma eterna fartura de felicidade, a vida é um eterno, suado e prazeroso aprendizado.


SIMPLESMENTE ALICE (Alice, EUA, 1990)
Direção: Woody Allen
Elenco: Mia Farrow, Alec Baldwin, Blythe Danner, Judy Davis, William Hurt, Keye Luke, Joe Mantegna, Bernadette Peters, Cybill Shepard, Gwen Verdon, Holland Taylor, Julie Kavner


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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