12 de mar. de 2011

Goya (1999)



por Luiz Santiago

     
     Francisco de Goya y Lucientes (1746 – 1828) é ao lado de Diego Velázquez e Pablo Picasso um dos grandes nomes da pintura espanhola. Sua arte passou, ao longo dos anos, por uma grande mudança estética, especialmente no que concerne ao uso da cor e dos temas trabalhados, indo de paisagens claras e situações da corte de Carlos IV, com telas bem iluminadas e coloridas, para o horror que se apossou da Europa após a Revolução Francesa (1789), espírito de suas famosas Pinturas Negras, e principalmente nos quadros Dois de Maio em Madri e Três de Maio em Madri, uma dueto plástico que mostra um dos terríveis acontecimentos advindos da ocupação de Napoleão Bonaparte na Espanha. Goya en Burdeos (1999), de Carlos Saura, é um filme que foca os últimos momentos da vida do pintor em seu exílio voluntário na França. Temos em cena a sua relação com a velhice, a família, e as lembranças guardadas de sua amante, a Duquesa de Alba.

     Transpor a vida de um pintor para a grande tela não tem sido uma tarefa muito fácil para os diretores que se propõem a fazer homenagens aos pintores que admiram ou que simplesmente querem trazer ao público um pouco da vida particular dos grandes ídolos das artes plásticas. Cada uma dessas cinebiografias ou filme sobre momentos da vida de um pintor, possuem falhas artísticas, mas todas elas, sem exceção, conservam um caráter plástico tão surpreendente, que é quase um orgulho afirmar que até hoje o cinema viu mais sucessos estéticos do que fracassos em relação a filmes sobre pintores. Vejamos alguns casos.

  • Sede de Viver (Vicente Minelli e George Cukor, 1956) – sobre Van Gogh
  • O Mistério de Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956) – idem título
  • Agonia e Êxtase (Carol Reed, 1965) – sobre Michelangelo
  • Pirosmani (Giorgi Schengelaya, 1969) – sobre Niko Pirosmani
  • Edward Munch (Peter Watkins, 1974) – idem título
  • Um Lobo Atrás da Porta (Henning Carlsen, 1986) – sobre Gauguin
  • Caravaggio (Derek Jarman, 1986) – idem título
  • Frida (Julie Taymor, 2002) – sobre Frida Kahlo
  • Klimt (Raoul Ruiz, 2006) – sobre Gustav Klimt
  • A Ronda da Noite (Peter Greenway, 2007) – sobre Rembrandt


     Em cada um dos casos acima, o espectador é apresentado a algum episódio ou à biografia de um pintor. Essas obras nos trazem um rigor plástico muito particular, um trabalho fotográfico escrupuloso e sempre tendenciosamente ligado às cores e visual típicos do pintor retratado. Na maior parte dos casos, com raras exceções, os erros encontram-se no roteiro, o modo como a história é organizada, e até mesmo na edição, muitas vezes cansando o espectador desnecessariamente, como é o caso da cinebiografia sobre Goya, dirigida por Saura.

     Visualmente, Goya en Burdeos é inquestionável. Um dos maiores diretores de fotografia da Europa, Vittorio Storaro (parceiro de Saura desde Flamenco, de 1995) é o responsável pelo visual do filme, e seu estonteante uso de luz não só impressiona o espectador como consegue trazer para a tela toda a pulsão dramática, os medos e tendências artísticas de Goya, algo que faz desde a sequência inicial do filme, e se completa em cada cena de reprodução das telas do artista, como a estonteante sequência em que recria A Pradaria de San Isidro, um criativo jogo cênico de projeção, iluminação e trabalho com profundidade de campo. O que mais chama a atenção, é que Storaro privilegiou a preferência tonal das cores de Goya, sempre iluminadas por uma escala cromática de cores quentes (como se estivessem sendo vistas à noite, à luz de muitas velas) ou, no caso das pinturas negras, alucinações e lembranças trágicas, o uso de cores frias, mas especialmente do preto e do azul. A única cena que “destoa” de todo o filme, seja por sua fotografia, seja pelo caráter de filmagem em externa, é na verdade um pesadelo de Goya, e aí temos uma indicação psicológica: apenas no pesadelo o artista conseguia ultrapassar as paredes de casa.


     Seja por predileção pessoal (advinda depois de tantos filmes musicais, que requerem essencialmente o palco), seja por indicação da própria psique do cinebiografado, Goya é quase cem por cento filmado em internas. Essa característica claustrofóbica exigiu de toda equipe um trabalho que permitisse a ligação desses espaços de um modo mais leve, sem que fosse preciso o uso exaustivo de cortes para cada mudança espacial. A saída encontrada foi fazer as paredes “transparentes”, de modo que pudéssemos ver as personagens em trânsito até a sua entrada no foco da câmera, com apenas uma mudança direta da luz, mais ou menos como Storaro fizera em O Fundo do Coração (1982), um sonho visual dirigido por Francis Ford Coppola.

     O elenco do filme é um show à parte. O veterano e excelente Francisco Rabal interpreta Goya em sua velhice, ou seja, a maior parte do filme, e a postura carrancuda e silenciosa da personagem consegue nos passar tudo aquilo que não vem à tona através de gritos e gestos efusivos em cena. José Coronado também assume com grande competência o papel de Goya jovem, em cuja idade o pintor conheceu a Duquesa de Alba, interpretada pela ótima Maribel Verdú, sempre com sua forte imposição cênica mas nunca exagerada, algo que comprovamos em suas atuações em E Sua Mãe TambémO Labirinto do Fauno e Tetro. Dafne Fernández é Rosario, a filha do pintor, que contracenando com o gigante Francisco Rabal, ganha uma doce e necessária presença no filme, algo muito bonito de se ver. As ótimas interpretações em todo o elenco de apoio dão a esse filme uma presença cênica muito forte, uma característica recorrente nas obras de Saura.


     O erro de Goya talvez esteja na edição, quando muito, no roteiro, a partir do meio do filme. A história é apresentada de um modo truncado, a organização das cenas sem uma ordem muito específica funciona bem até um certo momento, mas a partir de então se torna cansativa, defeito reforçado nos toques constantes de tensão e distensão dramáticas nas cenas finais, culminando com uma última cena que ficou completamente deslocada de todo o conjunto final. Além disso, a duração dos últimos planos parece ser demasiada para o clima formado pela própria história e salientado pela música de Roque Baños.

     Todavia, mesmo com o deslize na edição e talvez no roteiro em seu desfecho, Goya não está aquém de nenhuma cinebiografia de pintores já realizada, ao contrário, inscreve-se com merecido destaque entre elas, posto que é regida por um dos grandes realizadores do cinema espanhol. Se não agrada por completo e incomoda por seu ritmo a partir de certo ponto, o filme nos compensa com a viagem quase surreal por meio de cores e texturas. Visualmente, um filme belíssimo. Pena que não o é por inteiro.


* Esse texto faz parte do especial Diretor do Mês – Março/2011: Carlos Saura


GOYA (Goya en Burdeos, Espanha, Itália, 1999).
Direção: Carlos Saura
Elenco: Francisco Rabal, José Coronado, Dafne Fernández, Eulalia Ramón, Maribel Verdú, Joaquín Climent, Cristina Espinosa, Josep Maria Pou, Saturnino García.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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