23 de fev. de 2011

A Vaca (1989)



por Luiz Santiago


     Lembrar-se de um acontecimento em nossa infância é sempre uma estranha viagem a um passado que os anos e a memória se encarregaram de remodelar. Seja através de fotografias como ponto de partida, ou de memórias vívidas, a infância parece nos visitar constantemente, em especial, naqueles momentos em que vemos brinquedos muito caros à nossa tenra idade, ou ouvimos músicas, personagens de TV, palhaços, cheiros, rostos, vozes, comidas. Como um universo que transita entre o bem e o mal, a infância adquire diferentes cores e sentimentos em cada “nova fase” que a visitamos, e sem percebermos, nos deparamos com flashes daquilo que formou o nosso modo de agir ou as nossas perturbações. É dentro dessa perspectiva de resgate mnemônico que o animador russo Aleksandr Petrov, inspirado em um conto de A. Platonov, concebeu o curta-metragem A Vaca (1989), emocionante retrato de uma memória de infância campesina.

     Numa primeira leitura, poderíamos classificar o filme como uma história de amor, de diversos tipos de amor, seja o da vaca pelo seu filhote ou do pequeno garoto por ambos os ruminantes. Numa esfera mais distante, a aproximação dos adultos em relação aos animais não passam de utilitária ou mecânica, visão que nos apresenta outra pequena e possível leitura dentro do curta. E além do amor e da aproximação entre homem e animal, existe o devaneio, o caráter surrealista e trágico do sonho, e o sofrimento pela perda de alguma coisa aparentemente não valiosa que afeta toda a família.


     O trabalho de pintura em vidro, característica autoral dos filmes de Petrov, ainda apresentava alguns momentos de estranheza, principalmente quando punha em foco personagens paradas ao lado de outras personagens em movimento. Mas essa observação quase purista em relação aos quadros, não querem dizer nada frente ao excepcional resultado da obra. A sensibilidade trazida da literatura não se fixa na palavra – o texto é mínimo – mas no silêncio e na observação. Aos poucos, surge um filme que fala sobre a entrega, muitíssimo bem representada pela última fala do garoto saudoso de seu animal de estimação, mas ciente de sua condição de ser humano: “Tínhamos uma vaca. Quando vivia, dava seu leite à minha minha mãe, meu pai, a mim e o bezerro, seu filho. E havia o suficiente para todos. Então vendemos o bezerro. A vaca sofreu, e pouco depois, foi morta por um trem. Também a comemos, porque ela era carne. A vaca nos deu tudo: seu leite, seu filho, sua carne, sua pele, suas entranhas e seus ossos. Me lembro de nossa vaca, e nunca a esquecerei.”. A memória do animal se mistura à tragédia, e nesse final, é muito mais impessoal do que a personalíssima convivência entre vaca e menino, que vemos no decorrer do filme – o que nos indica uma breve passagem do tempo e a alteração das lembranças do garoto.

     O modo como Petrov usa a câmera para filmar seus quadros e a perfeita iluminação focal de todas as cenas, permite uma continuidade fotográfica que é de dar inveja a muitos filmes por aí. Através do amor, da entrega e do mundo onírico-surrealista – que o diretor elevaria à máxima categoria em O Sonho de um Homem Ridículo (1992) – temos um filme sobre a memória afetiva de uma criança que se ofereceu em adoção à vaca que perdera o filhote. O absurdo e essa relação com o animal é tocante e muito bem construída, sem sentimentalismo gratuito ou construção de uma criança herói. Todos sofrem e ninguém e culpado.


     Apenas no soberbo filme iraniano A Vaca (1969) de Dariush Mehrjui, eu havia visto uma devoção e um carinho tão grandes em relação a esse animal, no cinema. Mas, em caminho diferente, Petrov traz a inocência, a delicadeza e a simplicidade de uma criança para mostrar o amor em contraponto com a morte e a perda. O amor ganha ares de mocinho-vilão, e nesse último caso, como um devorador das coisas que fazemos e amamos, tal qual em Os três mal-amados de João Cabral de Melo Neto. A vaca termina sendo um filme sobre a passagem do tempo e os acontecimentos que os novos ventos trazem consigo. Como nem sempre são bons e sempre nos visitam, sentimos uma incômoda cumplicidade com a solidão do garoto, deitado sobre o feno, tentando entender sua saudade. Se há tristeza na cena final de A Vaca, ela é muito mais nossa do que da própria história, e essa proeza conseguida por um curta de dez minutos só nos prova o quanto ele é genial.


* Esse texto faz parte do Especial Diretor do Mês - Fevereiro/2011: Aleksandr Petrov


A VACA (Korova, URSS, 1989)
Direção: Aleksandr Petrov


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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