13 de out. de 2010

Zabriskie Point



A Cultura da Contracultura

por Adriano de Oliveira


     Homem de arte sintonizado com o seu tempo, o cineasta italiano Antonioni topou, no final dos anos 60, o desafio de rodar um filme em solo americano, abordando, dentro de uma história ficcional, o tema então muito em voga da contracultura - basicamente um movimento sessentista contestador de valores sociais e culturais (anticonsumista, pacifista, crítico), descendente direto da geração beatnik e embrião nato do movimento hippie.

     Com um elenco de desconhecidos (excetuando Rod Taylor, que havia participado de "Os Pássaros"), trilha sonora contendo Pink FloydThe Grateful Dead Rolling Stones, bem como um roteiro assinado por não menos que cinco autores, entre os quais o próprio diretor e a icônica figurabeat de Sam Shepard, "Zabriskie Point" (1970) nasceu sob uma aura decult, mas também foi um imenso fracasso comercial para a MGM que o distribuiu.

     A trama, de fato, não é das melhores. É sua base uma love story tênue e efêmera, envolvendo a auxiliar de um empreiteiro e acadêmica de Antropologia, Daria (Daria Halprin), e um estudante universitário, Mark (Mark Frechette), procurado pela polícia por supostamente ter atirado em um agente da lei durante um protesto no campus. Quando o avião furtado pilotado por Mark cruza o caminho do carro de Daria atravessando o deserto, surge um romance "ao estilo contracultural" ambientado no monumento natural que dá título ao filme, localizado no Vale da Morte na Califórnia.


      Firme no seu propósito de cinema autoral, Antonioni como diretor impôs sua visão particular do tema, enquadrando a questão "contracultura versusinstituições da sociedade vigente" como um fenômeno da incomunicabilidade - esta, seu leitmotiv, sua indissociável assinatura temática. Aqui a incapacidade humana de entendimento foge do estrato individual para atingir outro patamar, a camada de grupos sociais e seus motivos: é o conflito das idéias coletivas que afasta os homens, na "nova velha ótica" do artista. "Zabriskie Point"surge, na cinematografia do italiano, como um passo criativo intermediário entre suas duas maiores obras, carregando consigo características fundamentais das mesmas: do predecessor "Blow Up" (66), o tema "percepção e incerteza" (o estudante rebelde Mark atirou ou não no policial?); do vindouro "Profissão Repórter" (75), um protótipo da estampa "road-movie da alma".

     Se o roteiro frágil e os intérpretes insossos não ajudam, o diretor consegue valer cada cena com seu domínio da arte e da técnica. Faz a "tarefa de casa" mostrando, à sua moda, alguns elementos contraculturais básicos: a contestação, sobretudo a estudantil, nos protestos retratados; o amor livre (incluindo uma ousada cena em tal sentido), a rebeldia irônica (a repintura de um avião furtado com motivos e palavras de ordem típicas do movimento). E de modo igual ilustra o contraponto ao tema: a poluição visual vinda da exposição obsessiva das marcas de empresas, a visão capitalista-selvagem das empreiteiras, os painéis publicitários que mais parecem personagens de carne e osso, de tão intrínsecos ao panorama urbano. Porém, vai mais além disso, emergindo do tradicional, este já bem-feito, pois a lente de Antonioni capta nuances raras. Não lhe bastam enquadramentos com panorâmicas e tomadas aéreas mostrando o deserto como paisagem subjetiva representante de um vazio interior humano. Também há uma sutil fotografia de um avião no céu e um carro na estrada como símbolos de liberdade e de escapismo imediato e ainda a exploração cinematográfica da beleza natural do monumento californiano Zabriskie Point em si - este um belvedere que, em sua vista intocada pela mão do homem, é espelho do sonho utópico, irrealizável ao humano moderno, de um coletivismo primitivista (não por acaso ali se desenrola uma seqüência orgiástica primando pelo polvilhamento de corpos amantes com a poeira do solo, como numa amálgama do ser e do sonho em um retrato elementar).


     Todavia, possivelmente a cena mais lembrada do filme é a da explosão da mansão incrustada em uma pedreira, vista de modo multiangular e em câmera lenta, ao som de Pink Floyd. Embora de inegável estirpe psicodélica - e naturalmente deve ser essa a sua primeira função - , tal cena é metáfora da incomunicabilidade tipicamente antonioniana, empunhando em si que a incompetência de sintonizar pensamentos, idéias e atitudes, seja entre quem for, leva à desagregação. Poucos, e Antonioni é um deles, conseguiriam extrair algo de belo, lírico e/ou filosófico na imagem de uma explosão: na perda da coesão da matéria, na transformação abrupta da energia de ligação das substâncias, nos objetos ou seus fragmentos lançados com violência ao espaço...reside uma estranha beleza na destruição, é o que também sugere essa passagem.

     "Zabriskie Point" foi alvo de censura, mas nenhuma maior que a interna. Muitas cenas foram cortadas pelo estúdio, e inclusive a conclusão da fita foi modificada. Originalmente, o filme se encerraria com a tomada de um avião escrevendo com fumaça no céu a frase "Fuck you, America" (não é preciso traduzir). Por aconselhamento da produção, alterou-se o final para uma cena de um belo pôr-do-sol. Anarquismo de quem?


Artigo originalmente publicado no Cine Revista.


ZABRISKIE POINT (idem, 1970)
Direção: Michelangelo Antonioni.
Elenco: Daria Halprin, Mark Frechette, Rod Taylor, Kathleen Cleaver.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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