21 de jul. de 2010

Dzi Croquettes



por Luiz Santiago

   O documentário Dzi Croquettes (2010), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, tem causado furor na crítica nacional. A história da formação, trajetória e fim do revolucionário grupo carioca que alcançou fama internacional, sendo aplaudido na Europa, visto e elogiado por Omar Sharif, Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, Josephine Baker, e tendo Liza Minnelli como “madrinha”, é contada com competência rara em uma estreia atrás das câmeras.


   Brasil, 1972: quatro anos após o decreto do AI-5, presidência do General Médici, o país inserido nos Anos de Chumbo, o DOI-Codi ampliando suas operações de tortura por todo o país e o “milagre econômico” posto como justificativa das atrocidades cometidas pelo governo; eis o cenário em que nasceu o Dzi Croquettes. Ao invés de partirem para a luta armada, seus treze componentes optam por mudar, subverter e criticar a realidade através da arte, e o fazem da maneira mais espalhafatosa possível, buscando especialmente no carnaval a sua identidade. Os treze homens que compunham o Dzi Croquettes, vestiam-se, atuavam, falavam e dançavam como mulher, de cara, um tabu quebrado e novos horizontes abertos, de frente para as perguntas dos que os viam, estupefatos: são homens? São mulheres? São gays? O que são esses rapazes? Ao que eles respondiam no próprio espetáculo: “Nem homem, nem mulher: gente”.



   Os Dzi Croquettes encabeçaram a primeira grande ruptura ideológica no Brasil da ditadura militar através da arte. A composição dos números do grupo perpassam as linguagens do teatro, do cabaré, dos shows da Broadway, do improviso cênico, da mímica, da dança. Os temas abordados seguiam a linha do deboche das situações do cotidiano, das frases e situações de duplo sentido, e principalmente da crítica e desconstrução das instituições estabelecidas como importantes para a saúde da nação sob ditadura: família, igreja e Estado. O próprio grupo era considerado uma família, e os nomes de palco de suas personagens demonstram isso: o pai, a mãe, as tias, as filhas, as sobrinhas, a empregada. A família brasileira encontrava-se pela primeira vez com a contracultura.


   O documentário de Issa e Alvarez segue a linha do “filme de bastidores”, mas trazendo à memória a trajetória do grupo e não o seu processo interno de produção. Em alguns momentos, vemos filmes amadores feitos no camarim dos artistas ou no quarto de hotel onde se hospedaram na França, o que dá esse ar “uterino” que o documentário carrega, e assume, quando diversas vezes, a câmera em plongée ou em contra-campo revela a existência da equipe técnica.


   A planificação escolhida pelos diretores segue a linha básica dos documentários informativos, mas apresentam planos injustificáveis e incômodos, como por exemplo, uma tomada na diagonal de um dos entrevistados que aparece o resto do filme inteiro filmado de frente. Afora essas terríveis incursões de “planos soltos” sem justificativa formal, temos uma narrativa fílmica muitíssimo bem executada, onde se alternam entrevistas, fotografias, filmes amadores em diversos lugares, filmagens dos espetáculos, cartazes, notícias de jornal, sobreposição de imagens, letreiros em luminárias, e músicas que vão de Chico Buarque a Jacques Brel. A montagem de Raphael Alvarez é precisa, e dá a vivacidade necessária a um filme desse porte: os planos das entrevistas tem duração bem definida, e o pouco excesso existente na forma externa reside na exposição de alguns números musicais do grupo, em detrimento de outros que julgamos serem mais bem representativos. O “estilo pingue-pongue” de algumas declarações sobre certos momentos dos Dzi Croquettes ajudam na formação do ambiente cômico que contém a narrativa, sendo o filme um excelente exemplo de como um documentário por informar, trabalhar a memória, criticar e divertir. Não concordamos com algumas críticas que taxaram o documentário de “insuportável” pela “forma picotada” com que algumas sequências se dão, e a ligação dessa “estética” com a Globo Filmes. A estética do estilo videoclipe não é um mérito da Globo Filmes, e foi inventada (sob outra intenção e aplicada de outra forma, obviamente) por Jean-Luc Godard, nos anos 1960. Essa estética hoje, concordamos, faz de muitos longas-metragens um horror formal, mas também resulta em filmes como Pulp Fiction (1994) e Oldboy (2003). No caso da Globo Filmes, também assentimos que suas produções seguem uma linha narrativa à Hollywood, portanto, clichê, cansativa e nada artística (com exceções), mas não nos esqueçamos que é da Globo Filmes, obras de alto nível do nosso cinema, como Cidade de Deus (2002), O homem que copiava (2003), Casa de Areia (2005), O ano em que meus pais saíram de férias (2006), Pro dia nascer feliz (2006) e Saneamento Básico (2007), isso só pra citar alguns. É necessário, portanto, ter cuidado ao olhar para esse “corte picotado” e vê-lo não como uma alternativa narrativa de primeira linha (não é, isso sabemos), mas no caso desse documentário, a escolha é bem vinda, e ganha o meu aplauso, posto que vejo nela uma forma de dar rapidez e dinamizar a obra, e se isso torna o documentário irritante, pergunto: seria necessário um “Arca Russa” dirigido por Antonioni no além-túmulo? Não entramos aí no subjetivo?


   A revolução cultural empreendida pelos Dzi Croquettes não se limitou apenas ao teatro, aos palcos. Em diversos depoimentos, vemos a força ideológica que impulsionaram, sendo um dos grupos pioneiros na exposição do mundo gay, com suas gírias, maquiagem pesada, figurinos exuberantes e muito coloridos, irreverência, e, no caso dos Dzi Croquettes, uma imensa cultura. No grupo havia artesãos, artistas plásticos, fotógrafos, cantores, bailarinos, coreógrafos, diretores de arte, e com o entrosamento no passar dos anos, essas qualidades foram socializadas entre eles. Outro elemento que não se deve passar batido é que a maioria do grupo era poliglota, principalmente em inglês e francês, com um sotaque que faz rir só de ouvir.


   Dzi Croquettes é um documentário ágil, pouco convencional, deve-se dizer, mas que muito impressiona pelo que apresenta e como apresenta, e merecedor de todos muitos prêmios que vem acumulando. Com depoimentos de Ney Matogrosso, Liza Minnelli, Ron Lewis, Gilberto Gil, Marília Pêra, Norma Bengell, Miguel Falabella, Nelson Motta, José Possi Neto, Betty Faria, Miéle, Pedro Cardoso, Aderbal Freire Filho, Jorge Fernando, César Camargo Mariano, Cláudia Raia, e de antigos representantes do grupo, o documentário mostra a magnitude da arte que produziram os Dzi Croquettes, um exemplo maravilhoso de como é possível revolucionar e influenciar o mundo, sem armas nas mãos.


DZI CROQUETTES (Brasil, 2010).
Direção: Tatiana Issa e Raphael Alvarez.




FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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