22 de jun. de 2010

Crise



por Luiz Santiago


   O conjunto da vasta obra de 51 trabalhos para o cinema a e para a televisão em 57 anos de carreira, nos permite classificá-lo com um dos cineastas mais prolíficos, cujos temas centrais das obras são profundas, emotivas e impressionantes observações da alma e da vida humana. O nome Ingmar Bergman suscita tramas fortemente ligadas ao teatro e à psicologia, rigorosa direção de atores, grande apuro estético (especialmente fotográfico) e roteiros com histórias existencialistas muito ligadas à libido. Durante toda a carreira, o cineasta explorou de forma inovadora todas essas características, e seus filmes se tornaram “a sensação” à época do lançamento (assim como eram os filmes de Hitchcock, Fellini ou Kubrick). Hoje, três anos após a morte do cineasta, com o lançamento no Brasil de toda a sua filmografia em DVD, desperta a curiosidade de cinéfilos para o início da carreira do cineasta, início que já traria “características bergmanianas clássicas”, início que se deu em 1946, com o filme 
Crise (Kris).

   O roteiro de Crise é uma adaptação do próprio Bergman para a peça dinamarquesa Moderdryet, de Leck Fischer, uma peça “familiar”, intimista e comercial. Bergman, que já tinha experiência no teatro (como escritor e diretor), seguiu a mesma linha narrativa dos palcos quando realizou este primeiro filme. Um narrador off, o Corifeu, apresenta a situação inicial para o espectador: uma pacata cidade do interior da Suécia recebe a visita da Sra. Jenny, que após 18 anos, vai ver sua filha, Nelly, que é criada pela Sra. Ingerborg Johnson, uma professora de piano. Na mesma casa, mora o veterinário Ullf, pretendente de Nelly. A visita da Sra. Jenny não é sem motivo. Após ter alcançado um bom nível social, ela pretende levar a filha para a capital, Estocolmo, onde possui um pomposo salão de beleza, ao lado de um teatro. O Corifeu-narrador off anuncia o “início” do filme:

     “Que a peça comece. Eu não a definiria como uma história grande e angustiante. É, na verdade, apenas um drama cotidiano. Quase uma comédia. Levantemos a cortina”.


   A narrativa teatral que introduz e conclui o filme faz com que a obra ganhe tonalidade de crônica. A vida e os dissabores das personagens são apresentados aos poucos, de maneira dinâmica: a chegada da Sra. Jenny, a irmã de Ingerborg, Jessie (o ponto cômico do filme), a notícia particular da morte iminente de Ingerborg, a chegada de Jack, o “escândalo” na noite do baile, a partida de Nelly para a cidade grande.

   Com a partida de Nelly para Estocolmo a história ganha aura mais obscura no desenrolar dos acontecimentos. Os sentimentos vem à tona; a morte, que a todo tempo cerca as personagens, chega, através do suicídio; o arrependimento e a remissão fecham o ciclo em torno das personagens e pontuam a fala final do Corifeu-narrador.

   Podemos considerar Crise, um filme que arma o campo de luta entre o desejo e a repressão (que gera a mentira, a desilusão e a confusão emotiva das personagens). A trama, aparentemente simples, revela o âmago do obscuro caráter humano e a incapacidade de lidar com ele. O orgulho e o medo da solidão temperam de modo doloroso a segunda parte da obra. Nelly passa a ser o catalisador da alegria tanto para Ingerborg quanto para Jenny e no caso dos homens, tanto para Ullf quanto para Jack. Entretanto, o espírito dionisíaco de Jack e Jenny fazem-nos trilhar o caminho da tragédia, seja com a desilusão e o descrédito na vida culminando com o suicídio do primeiro, seja com o abandono e a solidão da segunda.


   O título “Crise” ilustra bem toda a atmosfera que permeia a obra. Embora o tom de crônica diminua o peso dos temas tratados e os permeie de uma aparente simplicidade (recorrência nas comédias-teatrais existencialistas de Bergman, todas ligadas de alguma forma ao amor, às relações amorosas, como Uma lição de amor (1954), Sorrisos de uma noite de amor (1955) e especialmente O olho do Diabo, de 1960), o filme de estréia de Bergman aborda o funcionamento da vida, contrapõe a ingenuidade reclusa dos cidadãos do interior à astúcia individualista e desesperadora dos que vivem na cidade grande, e por fim, conclui que tudo isso faz parte de um processo necessário para a experiência de vida e convivência dos indivíduos. O tom de calmaria irônica da fala final do narrador, prevê um futuro feliz para os protagonistas, apesar de um pequeno impasse:

Podemos deixar a Sra. Ingerborg aqui, ao pé do sol. Ela está olhando para dois jovens descendo juntos a rua. Há uma certa distância entre eles, mas estão juntos. Nelly e Ullf. A calmaria desta tarde de sábado pousa suas mãos suaves sobre essa cidadezinha que é tão pequena.”.

   A vida se torna amplamente comum e cheia de marasmo disfarçado de paz. Apesar da quase-completa felicidade, há um amargor que enlaça o final do filme, e o fato de o narrador desviar-se do assunto principal para deixar ao espectador o destino do casal, relembrando o início do filme ao falar da cidade, nos faz colocá-lo no mesmo posto que o narrador de A hora da estrela, quando, depois de perguntar “qual é o peso da luz?”, ele cerca o tema mas desvia a atenção para a conclusão óbvia: não há mais nada para dizer.


E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. 
Sim.”

Clarice Lispector

   Para quem tem em mente as grandes obras de Bergman, executadas ao lado dos fotógrafos Gunnar Fischer e Sven Nykvist (principalmente), há de incomodar-se com todos (ou quase todos) os elementos técnicos de Crise, a começar pela montagem. O uso quase insuportável de fades do editor Oskar Rosander tem um único ponto louvável: exemplificar formalmente a confusão mental das personagens do filme. Um sequência deve ser destacada: quando a Sra. Ingerborg volta de Estocolmo, a insônia acompanha sua viagem. Ela então passa a lembrar-se de momentos alegres e tristes que envolveram Nelly, sua filha do coração, enquanto estava em sua companhia. O editor fez uma interessantíssima fusão dos trilhos do trem ao rosto da personagem, que por sua vez, funde-se a imagens do passado – uma forma muito criativa de criar diversos flashbacks em um curtíssimo espaço de tempo.

   A fotografia de Gösta Roosling é quase neo-realista. Pode-se perceber maior brilhantismo nas sequências filmadas no Salão de Beleza de Jenny. Todo o restante do filme é fotografado de modo “normal”, embora faça muito uso de luz pontual, como por exemplo, o fato do rosto da Sra. Ingerborg estar sempre iluminado, ou dos tons escuros em planos mais abertos, dando uma estupenda noção de profundidade de campo. Quando classificamos a fotografia de Crise como “normal”, aludimos ao fato de as obras posteriores de Bergman (a partir de Um barco para a Índia, de 1947), terem uma meticulosa e incrivelmente bela fotografia.



   Crise é um interessante filme de estréia. O diretor, anos depois, afirmou que “tudo nesse filme é ruim”, no que concordamos com ele no que diz respeito aos atores, principalmente na primeira parte da obra. O produto fílmico, fechado, é bom, visivelmente o primeiro passo de um gênio absoluto do cinema, embora não o seja, nesse primeiro filme.


* Esse filme ocupa o 23º Lugar no Veredicto nº2: Ingmar Bergman.


CRISE (Kris, Suécia, 1946)
Direção: Ingmar Bergman.
Elenco principal: Inga Landgré, Stig Olin, Marianne Löfgren, Dagny Lind, Allan Bohlin, Ernst Eklund, Signe Wirff. 


FILME BOM. RECOMENDAMOS ASSISTIR.

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