29 de nov. de 2011

O Sonho de Um Homem Ridículo (1992)


por Luiz Santiago


          Escrito por Dostoiévski em 1877, O Sonho de Um Homem Ridículo é uma narrativa fantástica, sombria e pessimista sobre a humanidade e sua perdição. O conto surgiu num contexto bélico (a Guerra Russo-turca), e exprime todo o sentimento de pesar de um cidadão sobre o mundo massacrante em que vive. A história é levemente alinear, e transita entre o sonho, a realidade, e a possibilidade de tudo o que é dito ser pura fantasia do narrador, uma vez originado na mente de um homem perturbado, vítima de uma doença social, causada pelo convívio humano que exige demais e abre poucas concessões. O paraíso é corrompido por uma intervenção externa e nada permanece intacto ou invisível aos olhos do mundo, dos homens, de Deus. Devemos lembrar que Dostoiévski já havia sido preso e exilado na Sibéria, além de ter cumprido serviço militar no Cazaquistão, o que lhe dava um alta dose de pessimismo e visão crítica de como as forças sociais (o governo, especificamente) podem interferir na vida de um cidadão e torná-la impossível, a ponto de um homem cogitar o suicídio. É nesse ponto que os questionamentos do Homem Ridículo centra-se, e é sob uma falsa felicidade e otimismo que temos a narração da história.

          Pode-se afirmar que além de Petrov, pouquíssimos realizadores conseguiriam transmitir o tom de loucura e medo contidos na obra de Dostoiévski. Não se trata apenas de uma adaptação literária. A versão de Petrov é uma animação ao mesmo tempo bela e sombria, e que consegue trazer as nuances literárias, as indicações subjetivas, os murmúrios e desconfianças de um “cidadão comum”, o chamado ironicamente de “Homem Ridículo”.

          Até que ponto da destruição de si mesma a humanidade conseguiu chegar? É possível que haja um regresso da maldade, ou a tendência é que os corações a atitudes humanas tornem-se mais podres e acabem por se aniquilarem? Através de sua técnica de pintura em vidro e filmagem delicada e paciente, Petrov nos apresenta a passagem entre o mundo chamado real e o mundo onírico, seja ele o paraíso cristão corrompido pelo ateísmo ou pelas vontades imediatas de grupos de homens; ou o paraíso terrestre da infância, cuja visão de beleza e paz volta ao Homem Ridículo como a lembrança mais bela. O diretor opta por trabalhar com diversas fusões de imagem e cortes bruscos de uma dimensão para outra. Pontos expressivos, como os focos de luz, geralmente servem de ligação entre esses dois mundos.


          Os traços formais da animação transitam entre a pintura agressiva, de pinceladas grossas e muita tinta, até a suavidade quase impressionista adotada pelo diretor nos momentos mais doces de seus filmes, como Meu Amor e A Vaca. A edição e mixagem de som trabalham cada ambiente como se ele fosse um pequeno inferno imaginário da personagem principal. Gritos, vozes, risadas macabras e conversas unem-se ao barulho do trem e sons de movimentos diversos. Como linha central narrativa em meio a essa polifonia, temos o monólogo interior do Homem Ridículo, por vezes, mais para si do que para o espectador, e por outras, tirando sua figura do pensamento e projetando-a na tela de forma dialética, nos incluindo, sem que percebamos, na história contada.

          O sonho aparece aqui com o seu caráter essencial: veículo criador de símbolos, de natureza complexa, representativa, emotiva e simbólica. Mesmo antes de Freud, Dostoiévski nos apresentava o valor potencial do sonho como captador de motivos do cotidiano para transformá-los em realizações de desejo ou simplificação de preocupações. E o que temos aqui? O homem que tenta se suicidar, mas que “conhece a verdade” quando é interrompido por uma menina que lhe puxa o sobretudo pedindo socorro. Se a salvação não se dá no estado de vigília, o verdadeiro desejo da morte é interrompido pela voz da inocência e sonho, e o intento de se matar é transformado em energia para uma viagem pela história da humanidade, e de como a guerra, a morte, a mentira e a corrupção se tornaram pilares da sociedade. As semelhanças com o Leviatã de Hobbes é espantosa.

          A escolha de Petrov por adaptar o conto não é menos sintomática do que as questões do próprio autor para escrevê-lo. A ironia do diretor está na representação da Rússia como um paraíso comunista e ao mesmo tempo como um possível paraíso capitalista, sendo que o Homem Ridículo povoa os dois mundos e acaba morrendo neles. Independente do sistema político adotado, do tipo de Império no poder ou organização social, as perturbações legislativas e a obrigação de socializar-se (acabando por gerar a renúncia de si mesmo) está implícita como inevitável para cada um.


          A desesperança e a insanidade põem fim à animação. Sem esperança política, social ou pessoal, o Homem Ridículo parece voltar à realidade, mas não deixa de estar inserido em seu sonho cristão de perfeição do espírito humano e paz. Talvez esse desejo de que tudo fique bem o faça um Homem Ridículo. Parece que querer que as coisas fiquem bem é pedir demais, é sinônimo de visão adocicada da História. O curta de Aleksandr Petrov nos mostra bem essa faceta popular do que é o engajamento político ou a identidade pessoal. A ilusão da liberdade, a farsa da democracia, o paradoxo da escolha sugerida, a ilusão do livre arbítrio... está tudo lá, na alma, no homem, na sociedade, e aquele que se dispuser a fazer algo para propagar uma estrutura muito diferente, será taxado de Homem Ridículo, e suas ideias não passarão de sonhos desconexos, fantasiosos e sombrios.




O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO (Son Smeshnogo Cheloveka, Rússia, 1992).
Direção: Aleksandr Petrov
Roteiro: Fiódor Dostoiévski (conto) e Aleksandr Petrov (adaptação).


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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