por Adriano de Oliveira
Não se deixe enganar pelo título do filme. O Sequestro de Um Herói (Rapt, França/Bélgica, 2009) não é uma obra policial repleta de ação - ao menos naquele sentido hollywoodiano a que o mundo se acostumou. Trata-se, sim, de um misto de drama, policial e suspense, todos com seu quinhão, mas espalhados e revelados de uma forma menos convencional. O belga Lucas Belvaux, que como diretor e roteirista está acostumado a sair do comum, dá uma amostra perfeita de como subverter cânones. A abordagem das situações e dos personagens não cai em fantasismos, se mostrando crua, realista e por vezes até desdramatizada. A ação é mostrada sem malabarismos (não há um disparo de arma de fogo em cena), e o filme não termina quando o tal sequestro acaba: ele vai além, mostrando sem pressa as consequências daquele episódio na vida de alguns envolvidos. Andamentos que remetem mais à obras transformadoras de filmes de gênero, como o são o romeno Polícia, Adjetivo e o japonês Eureka e menos à exemplares cartilhados do tipo O Preço de Um Resgate e Cativeiro - ambos americanos.
A obra aborda, no plano da ficção, o rapto de Stanislas Graff, presidente da maior companhia francesa, uma figura influente e eventual membro da comitiva do mandatário-mor da República. Ao ser exigida uma vultosa quantia - 50 milhões de euros - por seu resgate, surgem questões nas mais variadas esferas. A Polícia não quer que o valor seja pago para desestimular novas ações criminosas do tipo. A família não sabe como levantar o valor pedido sem desestruturar a empresa. Esta, por sua vez, fica ameaçada de ingerência na ausência de seu maior acionista. Mas o maior problema parece estar na revelação da vida pregressa do sequestrado: vem à tona nas revistas e nos jornais o lado B de Stanislas, desnudado a público como um mega-empresário inescrupuloso, obcecado pelo jet set, viciado em cassinos e altíssimas apostas, impregnado de dívidas de jogo, lotado de amantes. Em suma, não é apenas um figurão que foi posto em cativeiro. O filme trata da própria Moral, que se apresenta sequestrada de quase tudo e de quase todos que bailam à cena: a moral do magnata, raptada por ocasião da ganância primeva e da sua ausência de valores familiares e fraternais; a moral das instituições, desvanecendo à jato frente aos obstáculos éticos; a moral da coletividade, que se demole perante aos fatos (a vida particular da vítima é exposta por obra da imprensa, a família se divide sobre o caso, o braço-direito do protagonista que passa a agir de acordo com diretrizes corporativistas, etc.).
No papel principal, está Yvan Attal, que estrelou o thriller Anthony Zimmer - A Caçada, malogradamente refilmado nos EUA como O Turista (sim, aquele mesmo em que você está pensando, com a dupla Depp-Jolie). É um longa onde não há os mocinhos tradicionais. Stanislas, mesmo na condição de vítima (algo que pode gerar certa empatia dele com a audiência), não é um santo, como já se disse acima, ainda pesando contra ele o fato de que, como pai de família revela-se uma empáfia (não bastasse ser exageradamente adúltero), preferindo dar mais atenção ao seu cachorro do que à esposa e filhas. Ao abordar o fracasso das relações do homem moderno, o filme expõe uma tão inusitada quanto bem-vinda "face Antonioni" de si.
Está em fase de pré-produção a versão norte-americana desse longa, sob o título provisório Abducted. Foi escolhida para dirigi-la a cineasta dinamarquesa Susanne Bier, recentemente premiada com o Oscar de filme estrangeiro por Em Um Mundo Melhor. Além de um remake, nos dias de hoje, não constituir um fato bom justamente por sinalizar a crise criativa hollywoodiana na contemporaneidade, a preferência para a direção também não se mostra muito animadora. A contundente Bier da primeira metade da década passada, como a de Corações Livres, deu lugar a uma diretora de dramas intensos em seu cerne mas amolecidos quando de seus respectivos atos finais, casos de Brother e Em Um Mundo Melhor, cujos caminhos desembocam em soluções convenientes para as suas tramas, típicas de quem quer atingir a uma plateia ampla e revelando um caráter industrial que serve bem aos interesses de Hollywood, para quem a cineasta já trabalhou emCoisas que Perdemos pelo Caminho, selado com idêntico rótulo.
Só é possível admitir o título nacional O Sequestro de um Herói como um exercício de ironia por parte de quem assim o batizou para ser exibido às nossas salas de cinema. Qualquer coisa fora disso apenas demonstraria um equívoco gigantesco por parte do mesmo, visto tomar o canalha Stanislas por herói.
Vale destacar ainda a sóbria fotografia de Pierre Milon e a discreta, mas belamente funcional, trilha sonora de Riccardo Del Fra - ambos colaboradores habituais de Belvaux -, bem como a perfeita cena que fecha o filme: um belíssimo arranjo em conjunto de roteiro, direção e interpretação.
* Artigo originalmente publicado no Cine Revista
O SEQUESTRO DE UM HERÓI (Rapt, França / Bélgica, 2009).
Direção: Lucas Belvaux
Elenco principal: Yvan Attal, André Marcon, Michel Voïta, Anne Consigny, Françoise Fabian.