28 de mai. de 2011

A moral sequestrada


por Adriano de Oliveira



     Não se deixe enganar pelo título do filme. O Sequestro de Um Herói (Rapt, França/Bélgica, 2009) não é uma obra policial repleta de ação - ao menos naquele sentido hollywoodiano a que o mundo se acostumou. Trata-se, sim, de um misto de drama, policial e suspense, todos com seu quinhão, mas espalhados e revelados de uma forma menos convencional. O belga Lucas Belvaux, que como diretor e roteirista está acostumado a sair do comum, dá uma amostra perfeita de como subverter cânones. A abordagem das situações e dos personagens não cai em fantasismos, se mostrando crua, realista e por vezes até desdramatizada. A ação é mostrada sem malabarismos (não há um disparo de arma de fogo em cena), e o filme não termina quando o tal sequestro acaba: ele vai além, mostrando sem pressa as consequências daquele episódio na vida de alguns envolvidos. Andamentos que remetem mais à obras transformadoras de filmes de gênero, como o são o romeno Polícia, Adjetivo e o japonês Eureka e menos à exemplares cartilhados do tipo O Preço de Um Resgate Cativeiro - ambos americanos.

     A obra aborda, no plano da ficção, o rapto de Stanislas Graff, presidente da maior companhia francesa, uma figura influente e eventual membro da comitiva do mandatário-mor da República. Ao ser exigida uma vultosa quantia - 50 milhões de euros - por seu resgate, surgem questões nas mais variadas esferas. A Polícia não quer que o valor seja pago para desestimular novas ações criminosas do tipo. A família não sabe como levantar o valor pedido sem desestruturar a empresa. Esta, por sua vez, fica ameaçada de ingerência na ausência de seu maior acionista. Mas o maior problema parece estar na revelação da vida pregressa do sequestrado: vem à tona nas revistas e nos jornais o lado B de Stanislas, desnudado a público como um mega-empresário inescrupuloso, obcecado pelo jet set, viciado em cassinos e altíssimas apostas, impregnado de dívidas de jogo, lotado de amantes. Em suma, não é apenas um figurão que foi posto em cativeiro. O filme trata da própria Moral, que se apresenta sequestrada de quase tudo e de quase todos que bailam à cena: a moral do magnata, raptada por ocasião da ganância primeva e da sua ausência de valores familiares e fraternais; a moral das instituições, desvanecendo à jato frente aos obstáculos éticos; a moral da coletividade, que se demole perante aos fatos (a vida particular da vítima é exposta por obra da imprensa, a família se divide sobre o caso, o braço-direito do protagonista que passa a agir de acordo com diretrizes corporativistas, etc.).



     No papel principal, está Yvan Attal, que estrelou o thriller Anthony Zimmer - A Caçada, malogradamente refilmado nos EUA como O Turista (sim, aquele mesmo em que você está pensando, com a dupla Depp-Jolie). É um longa onde não há os mocinhos tradicionais. Stanislas, mesmo na condição de vítima (algo que pode gerar certa empatia dele com a audiência), não é um santo, como já se disse acima, ainda pesando contra ele o fato de que, como pai de família revela-se uma empáfia (não bastasse ser exageradamente adúltero), preferindo dar mais atenção ao seu cachorro do que à esposa e filhas. Ao abordar o fracasso das relações do homem moderno, o filme expõe uma tão inusitada quanto bem-vinda "face Antonioni" de si.

     Está em fase de pré-produção a versão norte-americana desse longa, sob o título provisório Abducted. Foi escolhida para dirigi-la a cineasta dinamarquesa Susanne Bier, recentemente premiada com o Oscar de filme estrangeiro por Em Um Mundo Melhor. Além de um remake, nos dias de hoje, não constituir um fato bom justamente por sinalizar a crise criativa hollywoodiana na contemporaneidade, a preferência para a direção também não se mostra muito animadora. A contundente Bier da primeira metade da década passada, como a de Corações Livres, deu lugar a uma diretora de dramas intensos em seu cerne mas amolecidos quando de seus respectivos atos finais, casos de Brother Em Um Mundo Melhor, cujos caminhos desembocam em soluções convenientes para as suas tramas, típicas de quem quer atingir a uma plateia ampla e revelando um caráter industrial que serve bem aos interesses de Hollywood, para quem a cineasta já trabalhou emCoisas que Perdemos pelo Caminho, selado com idêntico rótulo. 



     Só é possível admitir o título nacional O Sequestro de um Herói como um exercício de ironia por parte de quem assim o batizou para ser exibido às nossas salas de cinema. Qualquer coisa fora disso apenas demonstraria um equívoco gigantesco por parte do mesmo, visto tomar o canalha Stanislas por herói.

     Vale destacar ainda a sóbria fotografia de Pierre Milon e a discreta, mas belamente funcional, trilha sonora de Riccardo Del Fra - ambos colaboradores habituais de Belvaux -, bem como a perfeita cena que fecha o filme: um belíssimo arranjo em conjunto de roteiro, direção e interpretação.


* Artigo originalmente publicado no Cine Revista


O SEQUESTRO DE UM HERÓI (Rapt, França / Bélgica, 2009).
Direção: Lucas Belvaux
Elenco principal: Yvan Attal, André Marcon, Michel Voïta, Anne Consigny, Françoise Fabian.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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