27 de abr. de 2011

Os Sete Samurais


por Luiz Santiago


     É muito curioso que o “cineasta japonês mais ocidentalizado” tenha dirigido as principais e mais relevantes obras sobre a história do Japão. Dono de uma escrupulosa visão cênica e de um conhecido perfeccionismo e ousadia, Akira Kurosawa é uma das principais vozes do cinema japonês no pós-guerra. Seus filmes vão dos dramas cotidianos aos épicos sobre o Japão do Período Sengoku ao período Edo, momentos da história do país marcados pelo caos e por uma forte disputa política, desordem, miséria social, guerras, banditismo e fome, terminando com o poderio dos xoguns (chefes militares com forte influência política), o estabelecimento definitivo dos samurais e o início do Japão Moderno, um pouco antes da aparição mercantil estadunidense no país, na segunda metade do século XIX.

     Remodelando os filmes do “gênero” chambara (obras cujo tema traz a luta de sabres entre heróis), Kurosawa pincelou seus filmes históricos com o dinamismo e as recriações típicas do western, o que resultou em películas essencialmente nacionais mas com um apelo ocidental muito grande, como podemos observar em A Fortaleza Escondida (1958)¹Yojimbo (1961) e Sanjurô (1962). No entanto, o início dessa jornada épica e histórica se deu em 1954, quando Kurosawa lançou Os Sete Samurais, filme que já nasceu ambicionando o título de maior produção de aventura dramática já rodada no Japão.


     Com pouco mais de três horas de duração e dividido em três partes, o filme traz não apenas uma recriação do caos político e social no Japão do século XVI, mas também um desfile de valores pessoais e comunitários baseados na aceitação, reconhecimento, empenho e trabalho. O filme vai muito além da jornada épica de uma vila para libertar-se dos salteadores que lhes pilhava a maior parte das colheitas. A contratação dos samurais pelos aldeões e todo o desenrolar da estadia destes na vila, é uma vereda para o aprendizado, e consiste em um período de adaptações psicológicas e físicas de ambos os lados.

     A primeira hora do filme caracteriza-se pela busca aos samurais. Após a introdução da história, somos levados à cidade onde nos serão apresentados todos os importantes personagens do filme. A música de Fumio Hayasaka altera o ritmo e o tom de cada sequência crucial, gerando ou distendendo a tensão do espectador, conforme a relevância daquele momento para o filme. A música-tema é recorrente durante todo a projeção, mesmo que em arranjos menos pomposos ao som dos metais na melodia original, algo que Hayasaka já fizera em outros filmes de Kurosawa como Cão Danado (1949), Rashomon (1950) e Viver (1952). Junto à musica, o uso da câmera lenta em algumas cenas nos dá a visão psicológica do acontecimento, elevando assim o significado retilíneo e único da imagem projetada.


     O primeiro samurai aparece com ímpeto de líder, usando inicialmente da astúcia e não da força para resolver o caso do sequestro de uma criança. A habilidade visual de Kurosawa explora todo o espaço geográfico da vila e se atém aos mínimo detalhes, inclusive no ritmo e trânsito dos elementos em planos mais afastados ou em profundidade de campo. No momento em que o samurai Kanbei raspa a sua cabeça e se disfarça de monge para enganar o sequestrador, o deslumbre cênico-estético se transforma pela primeira vez em poesia visual, a imagem cria um significado em si mesma, todo o ritual, a velocidade da montagem e a tensão musical convergem para o destaque daquela personagem, mas o espectador tem um interesse por todo o plano e toda a história, criando ele mesmo a importância dramática para a cena. Esse é um dos muitos recursos de dinamismo narrativo que o diretor irá usar pelas três horas seguintes, habilidade muitíssimo bem executada e que faz com que todo o longo tempo não seja massacrante para o espectador.

     A vivacidade do filme não seria possível sem a ampla manipulação da forma interna e externa do filme através da edição, que o próprio Kurosawa assina. A introdução da obra é ambientada em externas, com priorização dos planos gerais fixos e alguns planos de conjunto. Da vila para a cidade e nas sequências ali rodadas, temos transições simples. O tempo interno dos planos se altera bastante, e uma montagem praticamente circular sustenta essa parte da história. Valendo-se do humanismo necessário para a contratação dos samurais pelo preço de três refeições diárias, questões morais e éticas são vagamente sugeridas. O orgulho de alguns espadachins e samurais contrastam com a humildade e perseverança daqueles que aceitam lutar não pela fama ou pelo dinheiro. O interessante é observarmos que ao partirem da cidade, são apenas seis e não sete samurais. O último elemento do grupo será aceito algum tempo depois, não pelo fato de ser samurai, porque não o era de fato, mas pela forte personalidade que desde o início tenta manter o grupo unido. Interpretado por um dos atores preferidos de Kurosawa, Toshirô Mifune, a personagem Kikuchiyo é o ponto cômico do filme, uma criança em forma de adulto que fará o contraste em relação aos outros seis samurais e concentrará todos os momentos cômicos da película numa espécie de auto-paródia da atuação do próprio Mifune, uma das grandes escolhas de Kurosawa para equilibrar o peso do roteiro.


     A segunda parte do filme começa exatamente com a chegada dos samurais à vila. A resistência inicial dos moradores é o silêncio. A vila parece abandonada, todos estão escondidos dentro de suas casas. O medo se instaura nos moradores, embora todos, até aquele momento, tivessem clamado pela chegada desses defensores. O que observamos aqui é o medo dos camponeses em relação à nova ordem de poder que naquele momento se estabeleceria. De uma hora para outra, homens com armas garantiriam a segurança de todos, e claro, deles emanaria o poder controlador sobre todos – pensamento defendido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes. Os samurais assumiriam então o papel do Estado, dando ordens inclusive ao Ancião da vila, uma autoridade local. Vemos que o papel externo do Estado e seus organizadores era extremamente falho, e percebemos isso em uma cena em que os camponeses até cogitam em notificar os magistrados, mas de pronto abandonam a ideia, alegando inaptidão dessas autoridades em lidar com os bandidos, daí a escolha pelos samurais. Entretanto, a chegada desse novo poder não é bem recebida. É necessário um alarme falso de invasão para que o povo implore aos samurais que o defenda, e então o medo se dissipa. Em troca da manutenção paz para a futura felicidade (mais uma vez o pensamento de Hobbes), os cidadãos aceitam o controle da nova ordem.

     Se fôssemos definir uma atmosfera para toda a segunda parte do filme, poderíamos compará-la à aparente calma que precede as grandes tormentas. Nesse segundo momento, a espera pelo ataque dos bandidos é compassadamente trabalhada. A inovadora direção de Kurosawa imprime a esse longo período um significado muitíssimo pessoal e praticamente individual. Primeiros e primeiríssimos planos aparecem em abundância, a natureza e o espaço físico da vila integram-se às personagens, os elementos móveis e imóveis tornam-se objetos de observação da câmera e interação com os atores. Cercas e lagos artificiais entram nos planos de defesa dos samurais. A comunidade une esforços para construir esses obstáculos aos invasores, e quando o ritmo do filme parece esgotar-se, Kurosawa desvia brevemente a nossa atenção em pequenas sequências individuais sobre a personalidade de alguns dos camponeses e samurais.


     O humor típico do desenvolvimento dos filmes de John Ford parece ter indicado um caminho seguro para Kurosawa, que alterna sem medo momentos de pura descontração protagonizados por um Toshirô Mifune bufão, e momentos de exposição das fraquezas, medos, expectativas dos protagonistas. Surge o romance e o desejo sexual. Revelações acontecem, e as primeiras expedições estratégicas em torno da vila são realizadas. Quanto mais o filme se aproxima das batalhas finais, mais curtos os planos se tornam, menos iluminada fica a fotografia e mais presente se torna a música-tema. Sem pressa e em perfeito timming, a ausência de ação na segunda parte começa a ceder espaço para a expectativa do ataque.

     A noite anterior à batalha final e as primeiras horas do dia decisivo demonstram muito bem a ideia de manipulação formal defendida por Kurosawa. Com efeito, os atores passam de encenações pacíficas para frenéticas explosões de raiva, a câmera alterna movimentos sobre seu próprio eixo e faz com que o plano se movimente, ou seja, a forma do filme é o objeto da da arquitetura óptica do diretor. Os elementos naturais entram para o ritual imagético, e algumas panorâmicas sobre colinas floridas, árvores, riacho e céu antecedem a longa e monumental sequência em que a natureza e o ser humano são um só corpo: a sequência da batalha final na chuva.


     Alguns temas recorrentes nos filmes de Kurosawa são identificados em Os Sete Samurais. Primeiro, a decisão e um personagem à margem em acompanhar penosamente a marcha de um grupo que inicialmente não o aceita. Depois, a mudança de pensamento ocorrida em vários segmentos. De certo modo, podemos ver o filme como uma lição de vida para todos os envolvidos, uma mudança de pensamento, ação e caráter que aos poucos se constrói e vem à tona no clímax do filme. Por fim, a chuva. Elemento natural característico dos filmes de Kurosawa (em oposição a Yasujiro Ozu, que tinha o sol como seu elemento característico), a chuva servirá de palco para a épica luta entre bandidos, camponeses e samurais. A água misturada aos corpos, às lâminas das espadas e à terra, cria um efeito visual poético e estonteante. Como bom conhecedor da dinâmica do cinema e tendo consciência de sua ambiciosa intenção, o diretor reservou para o final o momento de maior tensão e expectativa do filme. As filmagens realizadas com três câmeras diferentes ganharam na sala de edição uma montagem praticamente sequencial, é difícil abstrairmos a passagem dos planos, tal a pertinência plástica e dramática que guia a edição de Kurosawa nessa parte final.

     A longa batalha chega ao fim, e o filme caminha para os seus últimos minutos. Um momento de reflexão existencialista se insinua através do diálogo entre os três samurais sobreviventes. A vitória parece não ter sentido para aquelas que arquitetaram o plano, por isso, os grandes vitoriosos são os camponeses. É tempo da semeadura, e todos cantam alegremente enquanto executam o seu trabalho. As mulheres são o destaque dessa parte final, como um símbolo e fertilidade e o novo nascimento da vila de camponeses. A despeito da morte dos entes queridos, a paz duradoura que promete se estender dali para frente compensa a dor, e a vida prossegue.


     Dois estados de espírito são mostrados no epílogo da obra. A arte da guerra parece não dar orgulho aos seus praticantes, um tipo diferente de guerreiro nos é apresentado por Kurosawa, um tipo essencialmente humanista, que apesar de felicitar-se pela vitória na guerra e pela alegria de seus protegidos, chora e lamenta sinceramente aqueles mortos que também lutaram para que tal momento ocorresse. E em par com tal clímax lírico, o corte final nos deixa reflexivos sobre o significado daquilo que acabamos de ver. Entre as espadas nos túmulos e a cantoria dos camponeses, percebemos que a luta pela vida continua, mas não há espaço para dizer mais nada. Como em um haikai lido pausadamente, o filme termina dizendo muito em poucas palavras. Sob um plano que exalta o homem, o elemento que arquitetou o conflito e que poderia inclusive dar-lhe outros rumos, temos a celebração daqueles que optaram por lutar para dar um fim à guerra, e essa é uma das grandes realizações do homem, impedir mais desastres causados pelo que ele mesmo criou.

1 – A Fortaleza Escondida inspirou George Lucas a realizar Star Wars.

* Artigo dedicado ao meu amigo Nelson Lopes Rodrigues.

OS SETE SAMURAIS (Shichinin no Samurai, Japão, 1954)
Direção: Akira Kurosawa
Elenco: Toshiro Mifune, Takashi Shimura, Keiko Tsushima, Yukiko Shimazaki, Kamatari Fujiwara, Daisuke Kato, Isao Kimura, Minoru Chiaki, Seiji Miyaguchi, Yoshio Tsuchiya.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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