6 de mar. de 2011

Peça Inacabada para Piano Mecânico




por Luiz Santiago


     O terceiro longa-metragem de Nikita Mikhailkov, Peça Inacabada Para Piano Mecânico (1977) é baseado no primeiro drama de Anton Chekhov, e coloca frente a frente duas Rússias inimigas: a monárquica e a revolucionária. Ambientado em fins do século XIX, o drama se desenvolve em uma casa de campo onde um grupo de aristocratas russos reúnem-se para um final de semana lânguido e ocioso, mas deparam-se com crises e frustrações pessoais e alheias capazes de mudar todas as expectativas de uma estada tranquila regada a chá, caviar e música clássica.

     De Platonov, obra chekhoviana na qual se baseou para escrever o roteiro, Nikita Mikhailkov trouxe o olhar satírico para as classes sociais, seus motivos quase burlescos de disputa material e ideológica, e a derrocada dos valores tradicionais que ainda sustentavam a desmedida sociedade de sangue azul, ao passo que e o garbo sutil da burguesia não se furtava em denunciar os excessos de seus convivas e louvar as próprias conquistas através do trabalho. Além das questões sociais, o filme penetra no campo dos sentimentos, escancara a desfaçatez do casamento, e demonstra a que ponto pode chegar uma alma sufocada por obrigações sociais que não são nem de perto as suas¹. Através de uma comédia ácida que muito nos lembra o estilo de Ernst Lubitsch, Mikhailkov realiza um filme teatral, e plasma com louvável eficácia o ridículo drama do amor e as mudanças ideológicas de um povo.


     Realizado em uma União Soviética que passava por inúmeras mudanças internas mesmo em regência do duro governo de Leonid Brejnev, Peça Inacabada... é um grito pela liberdade de expressão e por mudanças políticas. Muito mais do que o irmão e também cineasta Andrei Konchalovsky, Mikhailkov denuncia os excessos políticos e tem um olhar muito particular sobre o poder e as largas mudanças pelas quais este passa durante o tempo. Nesse terceiro longa de sua carreira, o modo teatral advindo da da adaptação é usado para representar de maneira muito legítima esse palco de atores sociais. 

     Podemos entender a dinâmica espacial do filme como um fluxo de diferentes dramas. Na abertura, temos apenas tomadas externas, conversas espirituosas relacionadas a conquistas sexuais, emancipação feminina e o modo de vida dos vizinhos e conhecidos. Predominam os planos médios e gerais, impedindo-nos de ver mais de perto essa tão aprazível vida ao ar livre. Desde essas cenas iniciais, percebemos a cuidadosa maneira de Mikhailkov em arquitetar níveis diferentes à profundidade de campo, seja através de elementos do cenário, da disposição de objetos e pessoas em cena ou da montagem milimétrica de Lyudmila Yelyan, que segue uma convenção de trabalho com espaço muito comum nos filmes russos, explicada através da sequência: micro espaço dramático + espaços adjacentes em contraponto + ligação cênica entre os espaços = um grande plano dramático e revelador. Diferente da montagem dialética, esse tipo de edição tetra-espacial exige pouca reflexão do espectador, estendendo o filme por uma área menos crítica nas entrelinhas e mais observacional.


     A composição das personagens de Peça Inacabada... sai diretamente da Fábrica do Ator Excêntrico. A cada um dos espaços diferentes e em variados momentos da projeção, um ou outro personagem entra em crise e surta, muitas vezes alimentando um estilo de comédia digno de Molière, só que mais politizado. Além desses momentos de excentricidade cênica, que na verdade refletem as enfermidades psíquicas de cada um, a direção de atores realizada por Mikhailkov é algo que nos impressiona. Entre o natural e o bufão, o ótimo elenco conseguiu trazer à tona em uma disputa teórica, o que nas ruas de Moscou e São Petersburgo se dava com armas e mortes. Valores sociais e pessoais são contrapostos; a política e as organizações sociais são discutidas; o amor e a devoção interesseira são demonstrados, fazendo com que a obra ganhe esse caráter de discussão da vida política, na vida privada.

     Embora o fenomenal compositor Mikhail Glinka seja citado em um dos diálogos da obra, a trilha sonora de Peça Inacabada... é composta por realizações de Liszt, Donizetti e Rachmaninov. Como uma cortina que se estende no palco da casa de campo, a música não é usada como ilustração, embora um de seus efeitos seja esse, mas sim como um divisor entre as furiosas discussões verbais e o silêncio assustado e constrangedor que se faz em alguns momentos.


     Nikita Mikhailkov dirige um filme que embora adentre ao território da política, da psicologia e do existencialismo, não despreza as doses de absurdo que a vida encerra. Sua abordagem perdida no tempo, com um drama cômico captado por uma maravilhosa fotografia, termina com uma desesperança vaga e viciosa. Perdidos em um território histórico que muda a face mas não altera a estrutura, as personagens estão condenadas ao limbo de uma vida praticamente sem sentido, guiada por regras sociais e convicções políticas que mais fazem-nos parecer membros uniformizados de uma fanfarra na linha do tempo. Mesmo assim, o filme traz um delicioso encanto e pratica um exercício satírico com a excentricidade alheia. Isso não só nos torna cúmplices do circo de bizarrices do espaço diegético como nos faz pensar na “fauna humana” em crise que nos rodeia diariamente.


1 – Quando escrevi sobre A Pequena Órfã, de Lina Wertmüller, eu trouxe algumas reflexões sobre esse embate da estagnada e parasitária nobreza com a empreendedora e desonesta burguesia.


PEÇA INACABADA PARA PIANO MECÂNICO (Neokonchennaya pyesa dlya mekhanicheskogo pianino, URSS, 1977).
Direção: Nikita Mikhailkov
Elenco: Aleksandr Kalyagin, Mikhail Vassilyevich Platonov, Yelena Solovey, Sophia Yegorovna, Yevgeniya Glushenko, Sashenka Antonina Shuranova, Anna Petrovna Voinitseva, Yuri Bogatyryov, Sergey Pavlovich Voinitsev, Oleg Tabakov.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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