8 de fev. de 2011

Setembro / September (1987)



por Luiz Santiago


     O ano de 1987 foi único na carreira de Woody Allen. Ele estreou dois longas metragens nos cinemas – A Era do Rádio no primeiro e Setembro no último mês do ano – e recebeu aplausos da crítica por um e condenações por outro. A má recepção de Setembro já havia sido prevista pelo diretor, que repetidas vezes afirmou não haver mercado para o tipo de drama bergmaniano que ele, naquele momento da carreira, se dava o luxo de realizar. Setembro talvez tenha sido a primeira das muitas condenações injustas que Allen receberia dos críticos, não pelo filme ser um drama, mas por apresentar um trabalho a que muitas pessoas (mesmo alguns críticos) não conseguem e nem se dispõem a compreender. Um dos motivos é a comparação que geralmente fazem com as comédias do diretor (postura que Allen ironizou e zombou em Memórias, de 1980), ou aos dramas menos existencialistas como Hannah e Suas Irmãs (1986). Setembro é o Festim Diabólico de Woody Allen, mas sem a ambição de querer transparecer um único plano-sequência. O filme foi escrito como uma cine-peça, tendo a necessidade de um rigoroso trabalho de câmera, pequeno elenco, takes apenas em internas, e um curto espaço de tempo dramático.

     Com efeito, Setembro tem 1h20min. de duração, e sua história compreende 24h na vida de seis pessoas, dentro de uma casa em Vermont, em fins de agosto. Tanto a locação em um único set quanto o reduzido número de atores eram novidades para o diretor, e nessa primeira experiência cine-teatral (já ensaiada formalmente em Interiores, e em conteúdo na sua segunda homenagem a Bergman, Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão) ele usa apenas nove atores para realizar todo o filme, sendo seis deles personagens principais, e os outros três o ponto cômico da obra, que aparecem já no desfecho.


     Setembro conta a história de Lane (Mia Farrow), uma mulher sensível que decidiu ir para Vermont a fim de recuperar-se de um colapso nervoso, reflexo de terríveis memórias de sua adolescência, um amor frustrado, e uma tentativa de suicídio. Ela alugou o chalé da casa para um aspirante a escritor, Peter (Sam Waterston), por quem se apaixona mas não é correspondida. Peter apaixona-se por Stephanie (Dianne Wiest), melhor amiga de Lane, que passa as férias de verão na casa. Um vizinho da propriedade, Howard (Denholm Elliott, com quem Allen tentava trabalhar desde Interiores), é um professor viúvo que ama Lane, e sofre por saber que ela não sente o mesmo por si. Completam o elenco da casa a mãe de Lane (Elaine Stritch) e seu novo marido (Jack Warren). Com seis pessoas e um enorme conflito de interesses movendo-as, Woody Allen realiza uma obra de caráter emotivo, amargo e existencialista. Questionamentos sobre a felicidade, as relações, e a efêmera existência humana pontuam a obra.

     Como em uma peça de teatro, o filme é dividido em “atos”, quatro atos separados por um fade-out, com tempo de duração e motivo dramático diferentes. O diretor de fotografia Carlo Di Palma pinta com sua luz quente os cômodos da casa, que mesmo à luz de velas, conserva a paleta de cores que transita entre os tons amarelo, laranja e vermelho. Cada ato recebe uma tonalidade específica, que é gêmea do drama que se desenrola. Para um maior entendimento, dividirei pela atmosfera dos acontecimentos (como já sugeria Nabokov) as quatro partes do filme:



1º Ato: Seis apresentações
Primeiro a casa, e depois as personagens, temos as impressões inciais do enredo, e percebemos os primeiros conflitos.

2º Ato: A tempestade
Poético e deslumbrante, o maior de todos os atos cobre a noite do filme. A falta de energia e o uso das velas dão um ar requintado e campestre à casa, e a música ao piano simplesmente arrebata o espectador.

3º Ato: O dia seguinte
Se os conflitos são apresentados no 1º Ato, aqui eles aparecem na forma de acusações, culpas e ressentimentos. O contraste entre os desejos de cada personagem alcança o seu clímax.

4º Ato: Partidas
Não só de algumas personagens mas também a sugestão da passagem do tempo interno, a partida do mês de agosto e chegada do mês de setembro, sempre com aquela dubiedade para o futuro: o que acontecerá no próximo mês, com início do outono?


     A mágoa é um dos temas que se sobressai porque as relações entre Lane e sua mãe são marcadas por esse sentimento. A frágil Lane não consegue aceitar ou entender a vivacidade eufórica da mãe, sempre falante e ligeiramente cômica, comportamento oposto ao seu, regado pela seriedade depressiva, pela preocupação excessiva com a organização das coisas e com o futuro, pela frustração imediata e máxima quando não correspondida àquilo que deseja. Elaine Stritch incorpora essa personagem da mãe efusiva com tamanha seriedade e competência, que eu não consigo imaginar Maureen O'Sullivan no papel. E explico: Woody Allen terminou Setembro quase em meados de 1987. Depois de rever o primeiro corte do filme pronto, o diretor chegou à conclusão de que o filme estava horrível, e precisava ser refilmado. No entanto, parte do elenco antigo já não estava disponível para mais dez semanas de trabalho, o que resultou nas seguintes substituições:


a) no papel de Howard: Charles Durning... por ...Denholm Elliot.

b) no papel de Peter: Christopher Walken... por ...Sam Shepard... por ...Sam Waterston.

c) no papel de Diane: Maureen O'Sullivan (de fato, mãe de Mia Farrow)... por ...Elaine Stritch.


     A refilmagem de Setembro, segundo o próprio Allen, tornou o filme mais sério e nada niilista. Seu trabalho com o passado da personagem principal ficou mais evidente, e essa relação do trauma e suas consequências, um fato mais bem trabalhado. Seja como for, Setembro é um filme intimista, belíssimo esteticamente, com um trabalho de câmera contido, mas de uma fluidez impressionante e com boas interpretações. O texto de Allen centra-se, como já foi dito, no trabalho com o passado das personagens e a consequência desses acontecimentos no tempo presente. E o mais interessante é que o “tempo presente” que vemos, compreende apenas o espaço de um dia. Um filme teatral que discute amor, memória pessoal e apresenta personagens atingidas por um desesperador desejo (salva-se apenas o físico – o novo marido de Diane) não poderia ser considerado um “filme fraco”, mas se fosse apenas isso, haveria espaço para tal conclusão. No entanto, Woody Allen recria a cada ato do filme, através da memorável trilha sonora, do peculiar trabalho de câmera e da direção dos atores, uma obra que suplanta a criticada teatralização, uma obra que discute os limites, o desejo e as feridas das pessoas. Num desfecho doce, porém incerto, a câmera se põe de longe para observar através dos umbrais da porta as duas amigas que conversam sobre a vida dali para frente, como se o ciclo das tristezas tivesse acabado, e a despeito da mágoa, daria tudo certo. Setembro foi mal recebido pela crítica e levou poucos espectadores para as salas de cinema. Após vê-lo, é possível entender o por quê; do mesmo modo que é possível afirmar que de “filme menor” Setembro não tem absolutamente nada.


SETEMBRO (September, EUA, 1987).
Direção: Woody Allen
Elenco completo: Mia Farrow, Dianne Wiest, Denholm Elliott, Elaine Stritch, Sam Waterston, Jack Warden, Ira Wheeler, Jane Cecil, Rosemary Murphy.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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