6 de nov. de 2010

Cidade Baixa


Entre a paixão e a amizade

por Adriano de Oliveira


     Cidade Baixa, estréia em longa-metragem do diretor Sérgio Machado, trata da história de um triângulo amoroso envolvendo dois amigos fraternais que vivem de trampos e golpes (os ótimos Lázaro Ramos e Wagner Moura, dois dos melhores atores da novíssima geração do cinema brasileiro) e uma stripper (Alice Braga, sobrinha de Sônia Braga, em grande desempenho) que se interpõe entre eles. O cenário dessa ciranda amorosa é, na maior parte das vezes, a zona portuária de Salvador, nos dias atuais. Dados tais personagens e ambientação, temos ingredientes para uma trama pontuada de um intenso naturalismo. Não necessariamente o naturalismo de um Zola, mas um bem tropical, mais próximo de nossos Aluísio de Azevedo e Julio Ribeiro.


     Desta forma, Cidade Baixa parece um filme-tese. E ele o é, de certa maneira, embora não seja originalmente concebido para sê-lo, pois como seu diretor afirma, acima de tudo trata-se de uma história de pessoas, essencialmente humana. Em suma, tal película vai além de sua motivação inicial, o que por si só já constitui motivo de interesse. No mergulho que ela proporciona pelo peculiar universo da periferia retratada, com seus típicos personagens e a realidade sócio-econômica que circunda estes, há sobretudo um forte e inquietante romance a três que representa a mola-mestra de praticamente todos os eventos ali narrados. Um triângulo que é o epicentro de todos os bons terremotos dramáticos do enredo.

     Vê-se algo que é pouco convencional no cinema, em Cidade Baixa: como um fractal, que guarda nas partes menores a sua estrutura como um todo, a obra é repleta de cenas-síntese que exalam a sua essência, sendo impossível definir uma única como peremptória. Qualidade rara e feliz.

     Uma das grandes metáforas visuais do cinema brasileiro recente se encontra neste filme. Deco e Naldinho, amigos quase que irmãos sangüíneos, em dado momento brigam violentamente pelo amor da stripper Karinna (a qual, ao longo de toda a trajetória, não se decide especificamente por um deles), e depois por ela são simultaneamente cuidados das múltiplas lacerações faciais que um causou no outro. O sangue dos dois rapazes se mistura numa bacia d'água onde Karinna lava a toalha que enxuga os ferimentos deles. Ali, é como se um só sangue os unisse, fraternal e univocamente, pelas mãos da mesma mulher que os separa. A cena que se segue a esta nos leva da perplexidade à angústia em segundos. A poesia emerge inclusive das fontes mais brutas, nos diz a câmera de Sérgio Machado, entre tantas outras coisas.


     Os deveras pudicos poderão atacar a abundante linguagem chula e as intensas cenas concupiscentes que permeiam a fita, mas estas representam parte fundamental do realismo pelo qual "Cidade Baixa" prima e sem as quais tudo soaria implacavelmente falso. Também os mais ávidos por finais objetivos, bem delineados, podem ficar incomodados e insatisfeitos com a conclusão aberta e elíptica da obra, porém é esse estímulo à mente do espectador algo que faz muita falta no cinema de nosso tempo, lacuna aqui preenchida com laudabilidade.


Artigo originalmente publicado no Cine Revista.


CIDADE BAIXA (Brasil, 2005)
Direção: Sérgio Machado.
Elenco: Alice Braga, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Dois Mundos, José Dumont.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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