por Luiz Santiago:
Martin Scorsese é um dos cineastas estadunidenses contemporâneos mais respeitados por seu trabalho e estilo de fazer cinema. Tendo criado, ao lado de alguns amigos, a geração dos blockbuster, o realizador, um dos principais filhos da Universidade de Cinema de Nova Iorque, tornou-se uma verdadeira esponja cinematográfica (como Quentin Tarantino seria, anos mais tarde), absorvendo e adaptando de John Ford (e do gênero western, em geral), Alfred Hitchcock e Akira Kurosawa, o seu estilo violento, despojado e diversificado em gêneros, tendo em todas as obras sua marca autoral na direção.
Depois de ter Robert DeNiro como grande parceiro em oito longas, de Caminhos Perigosos (1973) a Cabo do Medo (1991), Scorsese parece ter “adotado” um outro ator, dessa vez, Leonardo DiCaprio, que trabalhou pela primeira vez com o diretor em Gangues de Nova York (2002), voltando em O Aviador (2004), Os Infiltrados (2006) e no mais recente filme do cineasta, o polêmico Ilha do Medo (2010).
O longa-metragem, que conta a história de um agente da polícia federal estadunidense que vai investigar a fuga de uma paciente numa ilha para prisioneiros de alta periculosidade (todos com problemas mentais), dividiu a crítica, e ainda semeia discussões sobre a qualidade artística, técnica e do produto como um todo, alguns até classificando a obra como um “filme menor” do diretor.
Da última vez que Scorsese visitou o puro suspense psicológico foi em Cabo do Medo, um brilhante remake de Cape Fear (J. Lee Thompson, 1962), com música de Bernard Hermmann (do original) que explode e amedronta desde a abertura. A montagem da colaboradora de longa data de Scorsese, Thelma Schoomaker, é tão instigante e aflitiva quanto o suspense criado em torno da magistral interpretação de Robert De Niro no papel de um psicopata que tenta vingar-se de seu advogado, após passar 14 anos na prisão. De Cabo do Medo à Ilha do Medo, Scorsese deixou de lado a audácia experimental do início da década 90, e procurou aprimorar suas características autorais: planos curtos, cuidadoso enquadramento, opção pelo não ou menor uso de efeitos especiais, pontualíssimo e narrativo uso da música, mão forte na direção de atores, diálogo com a cinematografia clássica, com a arte, e opção pelos finais subjetivos.
Em Ilha do Medo, o que emperra a trama é o tempo. Quinze minutos a menos de filme faria com que a arrastada história se tornasse mais apreciável, interessante, súbita, por assim dizer. Entende-se que a adaptação do livro de Dennis Lehane tenha ajudado muito nessa mostra quase didática dos espaços da ilha, da interminável tempestade, e das muitas alucinações e flashbacks. Mas algumas dessas narrativas nada acrescentam à trama, apenas criam uma realidade que só a longo prazo o espectador entenderá, ou seja, Scorsese sentiu o infantil medo de não ser entendido, e acabou dando motivos demais, quando metade deles bastaria para plasmar a perturbação do protagonista que DiCaprio interpreta com relativa competência.
Mas vejam: os tempos internos e externos não inibem a bela construção do espaço cênico e não impedem que o filme funcione. Ao contrário. Se como produto fechado esse escoar compassado dos acontecimentos na ilha é incômodo ao espectador, no que se refere à própria trama ele ajuda a configurar a atmosfera do medo. Na ilha, não epenas o “suspense aparente”, aquilo que é dito, chama a atenção. Narrativas paralelas se constroem em pleno desenrolar dos acontecimentos principais e ganham aos poucos lugar na trama central. A linha do “nada é o que parece ser” é seguida à risca na adaptação, e o roteiro prende-nos do início ao fim da projeção.
Os flahsbacks e as alucinações do protagonista são de uma beleza grotesca e inquietante. Mais uma vez o nazismo volta à baila no cinema, agora como sequela psicológica de um ex-combatente americano. A essas memórias do Campo de Dachau, as aparições da esposa morta e as histórias contadas paralelamente a esses focos dão-nos a gradual revelação do mistério que se constrói. No suspense, Scorsese caminha com segurança e genialidade. Apensar de cerebral (como O escritor fantasma de Roman Polanski), o suspense não é verborrágico, não cansa pelo conteúdo, mas, como já dissemos, pelo tempo.
A menos alucinada montagem de Thelma Schoonmaker deu espaço para uma narrativa musical que acompanha a dúvida que nos impõe a ilha: “o que é real aqui?”. De um quarteto para piano e cordas de Mahler à Music for Marcel Duchamp de John Cage, vemos desfilar paisagens e cenas de ação com ambientações quase barrocas de campos de concentração, uma casa onde chove cinzas, etc. Aliás, essa gama de elementos presentes no filme, demonstra o abraço de Scorsese aos gêneros e motivos cinematográficos mais diversos: o detetive numa trama meio noir, o filme B, o terror psicológico, e o próprio Scorsese, se aproximarmos imageticamente o carro de Taxi Driver que sai da névoa ao barco que também sai da névoa, no início do filme.
O desfecho aberto e nada moralista certamente desagradou aos que prezam histórias muitíssimo explicadas e uma lição de moral cristã. O que temos na cena final de Ilha do Medo? A perdição do protagonista em si mesmo, prisioneiro em seu labirinto de memórias e dor ou um “suicídio terceirizado”? Lançada a subjetividade, cai o pano.
Com um elenco de peso e destaque para Ben Kingsley, Emily Mortmer e Leonardo Di Caprio, o filme fixa sua maravilhosa apresentação. Mark Ruffalo está apagado demais entre tantos gigantes do cinema (Max von Sydow, por xemplo – aqui, muito mal aproveitado) e estrelismo, mas não chega a avacalhar. O elenco de apoio dá o recado com grandes performances, e consegue equilibrar as faltas do elenco principal.
Com uma direção de arte notável e boa fotografia (analisando o todo; porque há momentos decepcionantes), Ilha do Medo se sustenta sem muito esforço da crítica para clamar o passado de Scorsese. Não se trata de um filme maravilhosamente genial, por motivos que já comentamos, mas está longe de ser um “filme menor” ou um “filme fraco”. A sugestão para os que não viram a mão de Scorsese agir sobre o filme, é que o veja novamente. Ilha do Medo promete o que cumpre, embora todos nós esperássemos mais, vindo da fonte que veio.
ILHA DO MEDO (Shutter Island, EUA, 2010).
Direção: Martin Scorsese.
Elenco: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sydow, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Ted Levine.