por Luiz Santiago
Sabem aqueles filmes que propagam disfarçadamente a ideologia política de um país ou de uma época, e que surgem logo após a estruturação de um “novo momento”? Sabem as mágoas culturais, militares, históricas, psicológicas ou ideológicas, decorrentes de um processo que ainda assombra, com seus fantasmas? Pois bem, Salt (2010), de Phillip Noyce, contém todos esses ingredientes e mais alguns outros, menos dignos de serem enumerados, porque são muito conhecidos por quem já viu pelo menos um filme de ação hollywoodiano.
Evelyn Salt (Angelina Jolie, a quem prefiro – se forçado – em Lara Croft: Tomb Raider ou Sr. e Sra. Smith) é uma agente secreta da CIA, casada com um aracnologista alemão. No dia de seu aniversário de casamento, ela é acusada de ser uma espiã russa, uma das “peças” do Dia X, plano que tem por objetivo dar início à aniquilação dos Estados Unidos frente à comunidade internacional. E aí vai a nossa primeira observação: embora Salt não seja quem dizem que é, sua figura, o leitmotiv do filme, abre as portas para a demonização soviética, e para impingir na cabeça do espectador alienado a seguinte aproximação genérica e falsa: eis o casal vilão, “inimigos do mundo”: o nazista e a comunista.
A sequência inicial do filme é na Coreia do Norte (precisam de mais indícios?), com Salt sendo torturada, captada por uma câmera na mão sob ângulos diversos. Ela é libertada, e o filme ganha um ar de normalidade temporária, voltando aos “dias de hoje”. Ao ser acusada por um dissidente russo que afirma que Evelyn Salt é uma espiã, dá-se início a uma jornada de alta tensão e ação, protagonizada por uma heroína, algo que não vemos já a algum tempo.
Quem é Salt? A pergunta feita nos letreiros do trailer e nos spots de TV, desafia o espectador já na primeira meia hora do filme, que é desnecessariamente muito longo. Seria ela uma patriota ou de fato uma espiã russa em vias de dar início à destruição da maior potência mundial? Essas perguntas terão suas respostas dadas a prestação durante filme. O roteiro claudicante de Kurt Wimmer não consegue ser objetivo, e se esparrama em historietas sem justificativa narrativa, a maioria delas postas como flashbacks que tem por objetivo contrapor um passado maravilhoso ou a origem da história, ao inferno de traições e perseguições do presente. Mas se o roteiro é confuso e se atropela diversas vezes, a construção dos vários mistérios chega a merecer aplausos, porque foge da expectativa inicial, pelo menos não sendo previsível em seu desenvolvimento. Entretanto, a quantidade de planos, conspirações e motivos psicológicos, confundem o espectador mais atento, que só é preso à trama pela incessante e quase sufocante carga de ação do filme – não há nenhuma quebra de tensão ou modulação narrativa através da montagem, nada. O espectador dá graças a Deus quando o filme acaba.
A Guerra Fria volta às grandes telas. Lembremos a trama de Salt: os Estados Unidos estão ameaçados pelos russos. Os russos dizem, em dado momento do filme que “A Rússia voltará a ser o que era antes”. É engraçado, mas pela segunda vez, neste ano, eu vejo alusão a eles em blockbusters – lembram-se dos personagens russos de 2012?
O núcleo de Salt, é reflexo de uma série de ameaças atômicas, econômicas e políticas que rondam-nos hoje, e que muito preocupa o mundo, especialmente o governo estadunidense. Evelyn Barack Salt Obama é a salvadora da pátria ameaçada pelos conspiradores do Leste ou por qualquer ameaça possível e imaginável. O que salta às vistas, é que ela mente, representa, e mata o tempo inteiro, para impedir que “o mundo” sofra maiores danos. A premissa: se é para salvar a maioria, exterminemos a minoria ameaçadora. Ora, não era esse o pensamento nazista à época da “Solução Final”? Senhoras e senhores, bem-vindos a um filme ideológico.
Em oposição à heroína mentirosa, os vilões são os únicos que dizem a verdade. Farei minhas as palavras de Slavoj Zizek em sua obra Lacrimae Rerum, quando analisa o conteúdo ideológico de Batman, o Cavaleiro das Trevas (2008): o Coringa é o único que diz a verdade no meio de várias mentiras ditas para preservar a ordem social. Mas o Coringa “É” a própria máscara, e ainda por cima não tem memória (vide as diferentes histórias que conta sobre suas cicatrizes). Mesmo assim, sua intenção é tirar as máscaras de todos: Batman, Detetive Gordon, etc. Em Salt, as máscaras são posições sociais que “asseguram” a fidelidade do indivíduo ao país – ser agente da CIA, por exemplo. Mas as mentiras não param por aí. Retornemos ao início do filme, quando Salt é resgatada, na Coreia do Norte. A única opção do Senado é atender ao pedido de resgate feito pelo namorado da prisioneira, porque não queriam “alarmar a população”. Agora lembremos da cena final: como aquele detetive justificaria a fuga de Salt, do helicóptero? Certamente não diria que ele mesmo a libertou “pelo bem do país”. Vejam que, para a “salvação de todos”, uma mentira ou outra é aprovada e aplaudida, o que gera um ciclo infinito de ações e possibilidades, e talvez por isso, o filme termine com cara de Salt 2.
A música de James Newton Howard é tão sufocante quanto a avalanche de ação da fita. Seu papel é decorativo, apenas aumenta a tensão psicológica do espectador, e para por aí. Os raros momentos de pausa é quase um bálsamo para os ouvidos. A música sufoca e não cria nada, apenas polui a imagem, dando-lhe algo que ela mesma não poderia se dar: suja dramaticidade, ou seja, aquela “mise-en-scène noir” (algo que Spike Lee ou Sidney Lumet fazem muito bem, obrigado, sem precisarem agredir o espectador com música-choque o tempo inteiro). Digo isso porque a direção de Phillip Noyce é medíocre, destacando-se apenas em “cenas sérias” (mas trata-se de um filme de ação: pasme!), como a do primeiro interrogatório, cinematograficamente uma das melhores sequências do filme. No tocante às externas, vê-se que Noyce conseguiu trabalhar muito bem os espaços (lições aprendidas com a Trilogia Bourne?), e dar uma mobilidade notável ao cenário, não se atendo a pequenos nichos de ação, mas ampliando-o o máximo possível, como podemos ver na admirável sequência (nesse sentido!) da fuga de Salt pulando de caminhão em caminhão como se fosse uma spider woman.
Robert Elswit tem o seu mérito fotográfico especialmente nas tomadas internas, nos flashbacks e nas panorâmicas aéreas sobre a branca paisagem russa. De resto, nada demais. A direção de arte, a cargo de Teresa Carriker-Thayer obedece a funcional aparência dos ambientes cênicos, e merece muitos aplausos pela boa “caracterização psicológica” do espaço. A montagem de Stuart Baird e John Gilroy acerta apenas nos momentos de tensão, quando prepara e surpreende o espectador. No restante do filme, a narrativa-de-choque é usada para dar conta do ritmo, o que faz o resultado final ser péssimo, já que o filme tem imprestáveis planos longos e preciosos planos curtos demais. Não há uma adequação temporal no filme, os takes são porque são, não representam nada a médio ou longo prazo, e tudo depende do roteiro cheio de buracos e barrigas.
Ao retomar o fantasma da guerra fria, reafirmar o medo capitalista em relação ao socialismo e disparar altas doses de ideologia óptica em seus intermináveis 100 minutos de duração, Salt aparece revestido pela couraça da ultra-ação, empunhando a bandeira da heroína nacional, da mulher forte, decidida, e que se importa tanto com seu trabalho quanto com seu amável e amado esposo alemão (e aqui, o parênteses: a sensualidade de Angelina Jolie é anulada. Há uma completa deserotização no filme. Na sequência final, a figura masculinizada da protagonista choca ao espectador acostumado a ver mulheres sensuais encabeçarem cenas de ação, e o resultado não é nada agradável).
Quem é Salt? O que é Salt? No prefácio de sua Genealogia da Moral, Nietzsche escreve: Nós, os investigadores do conhecimento, desconhecemo-nos. É claro: pois se nunca nos “procuramos”, como nos havíamos de nos “encontrar”?
Estamos em um tumultuado século de tecnologias e medos, onde um salvador é muito bem vindo, e a alienação popular também. Quantos espectadores pararam para pensar que, o tema de Salt poderia ser qualquer outro, que aliás, daria muito mais força ao filme, mas a opção pela Guerra Fria, pelo vilão russo, e pelo esposo alemão, é puramente sintomático? Salt não é um filme político, é um filme de regressão ideológica que clama a crença irracional e nenhuma crítica à “nossa sociedade justa e democrática que é perfeita em todos os sentidos”. O filme é apenas um daqueles “sinais dos tempos” que forjam a memória coletiva com a intenção de torná-la partidária já sabe-se de quem. No mesmo prefácio nietzschiano citado no outro parágrafo, encontramos algo que ilustra com precisão esse toque único feito pelo discurso ideológico preventivo ou justificativo: “Semelhantes assuntos não despertam nem o nosso interesse, nem o nosso coração, nem sequer nossos ouvidos. Mas assim como o homem distraído e absorto acorda sobressaltado, quando o despertador dá a hora, assim nós, depois dos acontecimentos, perguntamos entre admirados e surpresos: “O que há? O que somos nós?” [...].
Antes de dizer que não há mais nada para acrescentar, quero lembrar que o nome do novo filme de Jean-Luc “Deus” Godard é: Socialismo. Como podem ver, o Sr. Fukuyama, e sua pregação sobre o “fim da história e das ideologias” é matéria de um sandeu. As “coisas” estão vivas. A história, a cada dia, reinventa-se. A memória é manipulada sempre que possível: lembrar-se das coisas criticamente é muito perigoso, por isso, visitar o passado sob um “novo olhar” é algo periodicamente necessário: “se alguém lembrar-se disso, que lembre-se assim”. Salt é apenas uma face da moeda. O cinema segue com suas ilhas de ideias à guisa de entretenimento, e o espectador e seu mundo... não vão nada bem.
SALT (Idem, Estados Unidos, 2010)
Direção: Phillip Noyce.
Elenco Principal: Agelina Jolie, Liev Schreiber, Chiwetel Ejiofor, Daniel Olbrychski, August Diehl.