16 de jun. de 2010

Um Homem Sério



por Luiz Santiago


          Marcel Martin afirmava que o cinema é, de fato, uma indústria, mas que o produto aí realizado não devia ser "industrializado", ou seja, perder suas qualidades artísticas em detrimento da venda. Tal como as catedrais, cuja construção em "ritmo industrial" não impediu de serem monumentos arquitetônicos de única beleza e valor artístico, o cinema deve, ou deveria, contornar a cartilha dos grandes estúdios e confeccionar produto fílmico e não fuga para uma população ligada ao multiplex que crê que o cinema se resume a pipoca com coca-cola, explosões, beijos e happy ending.

        Mesmo tendo os seus filmes produzidos e distribuídos por grandes estúdios, os cineastas-irmãos Joel e Ethan Coen se sobressaem com louvor na cena cinematográfica, merecendo o título de auteurs porque não se rendem ao humor fácil ou apelativo tão típico da indústria hollywoodiana da qual fazem parte.

          Educados pela escola noir, Joel e Ethan Coen são nomes consagrados no que se refere à manufatura de comédias críticas sobre a realidade - com evidente influência do surrealismo, atrelado ao universo do crime, da ilegalidade ou da fatalidade, como podemos observar em obras tão díspares como E aí, meu irmão, cadê você? (2000) e Onde os fracos não têm vez (2007). A cada novo título, os Coen criam um universo específico, geralmente plasmado por uma paisagem inóspita povoada por personagens que ganham sua força cênica nos rostos curiosos, que muito lembram os rostos fellinianos, e no modo típico de falar de cada um, (incluindo aí sotaques, erros idiomáticos, vícios de linguagem, falsetes e imitações/contenções vocais - vide as diferenças incrivelmente criativas pelas quais passam as personagens interpretadas por George Clooney, um constante colaborador nos filmes da dupla). Todos os filmes dos irmãos Coen, apesar de retratarem a realidade, são uma espécie de "outro mundo", um lugar que transita entre o possível cotidiano e o desencadear de fatos que vão do horror ao drama social, passando pela farsa, pela máfia, pelo drama psicológico, pelo policial e humor negro. É dessa capacidade de criação de outro mundo para suas histórias, que os irmãos Coen estendem suas qualidades como cineastas únicos e originais, mesmo quando apresentam obras de conteúdo menos impiedoso e mais ralo que o habitual (porém nunca "industrial"), como é o caso de Arizona nunca mais (1987) e O amor custa caro (2003).


          Em Um homem sério (2009), a dupla retoma sua idiossincrática e ácida veia trágico-humorista, depois do "western-killer" Onde os fracos não têm vez, e da "comédia-de-erros" Queime depois de ler (2008). Talvez um dos filmes mais formais dos irmãos Coen - no que se refere à forma, principalmente aos planos, todos rigidamente enquadrados em sequências quase religiosamente "secas" e simples -, Um homem sério é o desfile das desventuras do professor universitário Larry Gopnik (incrivelmente interpretado por um ator vindo do teatro, Michael Stuhlbarg), que vê, do dia para a noite, toda a sua vida desmoronar-se. Dentre tantas referências bíblicas contidas no filme, é impossível não comparar a história de Larry Gopnik à história de Jó. Porém, ao contrário da vida do Jó bíblico, que acaba recobrando tudo o que houvera perdido, o Jó-Larry Gopnik é torturado, literalmente, até o último minuto do filme. Não há sequer um momento de alegria para este homem. Em dado momento, pensa-se um pouco na sentença drummondiana em Cidadezinha qualquer: "Eta vida besta, meu Deus", mas logo vemos ruir essa ideia de que não acontece nada na vida de Gopnik: acontece sim, mas só desgraças.

         Trabalhando em um terreno que conhecem bem, por terem feito parte dele - a família judia do meio-oeste americano, na segunda metade dos anos 1960 - os irmãos Coen conseguem arrancar com dor alguns risos nervosos do espectador. Mas a trama é tão tensa (relembra o suspense e a tensão de Fargo, 1996) que não há espaço para muito humor. Ainda para piorar a situação, a busca da personagem principal por uma resposta divina acaba não dando em nada. Deus simplesmente se cala, e cada rabino com quem Larry Gopnik conversa parece desesperá-lo ainda mais. Com o silêncio da família, a inutilidade das instituições da qual faz parte, a ausência-silêncio de Deus, Larry parte para uma auto-busca de significado para a vida, mas acaba afundando em seus próprios escombros, que não param de aumentar.


         Um homem sério, como produto fílmico, é uma obra para poucos. Os espectadores menos familiarizados com a cultura judaica perdem parte do que está posto na tela. Entretanto, o filme é um contundente crítica social. A luta desesperada do protagonista para manter a calma enquanto tudo rui ao seu redor é a atitude típica da sociedade comunitariamente feliz, de hoje. A partir do título, é possível inquirirmos algumas questões a respeito do que é e de como se "forma" o caráter ou a vida de "um homem sério". A atitude irritantemente passiva do protagonista faz-nos perguntar se "ser sério", ou um "bom cidadão", é aceitar pacificamente as avalanches que nos acomete, e continuarmos exibindo a postura de classe média realizada. Um referência clara a essa questão da permanência estática frente às adversidades, é a fala do aluno sul-coreano, que tenta suborná-lo:

Por favor, aceite o mistério.

          Os irmãos Coen cobram dos espectadores o uso da palavra. A palavra surge aí, com uma grande libertadora. A personagem principal nunca fala francamente sobre o que se passa. Tudo é (mal) elaborado e passa a compor o quadro da desgraça que aos poucos ganha força. Não só como conteúdo de signo, para o roteiro extremamente enxuto deste filme, mas como elemento formal, como já disse, a palavra é de importância vital para os filmes de Joel e Ethan Coen.

          É curioso observamos como a dupla consegue espalhar significações afirmando-as ou negando-as ferrenhamente. Citemos dois casos: o primeiro, a afirmação, é talvez o mais famoso, e trata-se dos primeiros takes de Fargo, quando os letreiros afirmam que o filme se trata de uma história real, fato que sabemos não ser verdade. O segundo é a negação, e trata-se da negação dos Coen de que E aí, meu irmão, cadê você? é uma adaptação da Odisseia de Homero, fato que também sabemos não ser verdade. Citei esses dois casos, porque a dupla disse em entrevistas, que a pequena lenda iídiche no início do filme não tem nada a ver com o resto da história. Mas os fatos desmentem a afirmação - já citei aqui que os Coen criam, a cada título, um mundo à parte para suas aventuras. A pequena história que abre o longa é um prólogo-epílogo, a "lição de moral", a junção dos pontos que ficarão soltos na obra que se desenrolará dali em diante. Em resumo: uma vila no leste europeu. É um noite fria. Um homem chega em casa, e diz ter encontrado um conhecido da esposa, ao que ela responde estupefata que é impossível, pois este conhecido está morto há três anos (preste atenção aos simbolismos). A esposa então sentencia que o casal foi amaldiçoado por Deus. Nas sequências que se seguem, o espectador fica realmente sem saber o que pensar daquele personagem curioso: trata-se ou não de um espírito? A tragédia, o crime e a dúvida aparecem nessa introdução surreal do filme. Mais para o final da película, em uma de suas aulas, Larry falará do Princípio da Incerteza. Eis o espírito do filme: tudo converge para que ele seja (sem ser) uma história urbano-judaica de terror.

         Após os créditos iniciais, duas narrativas seguirão mostradas paralelamente até o desfecho da obra. Pai e filho são mostrados em suas diferentes atividades. O pai está em um consultório, fazendo exames de rotina. O filho, em uma sala de aula, ouve Somebody to love do Jefferson Airplane, em seu pequeno rádio, enquanto um velho professor conjuga um verbo em hebraico. Vale aqui duas observações. A primeira delas, é que o filme levará até o final essa dualidade dos mundos do pai e do filho. Até no desfecho da obra, tanto um quanto outro estão frente a frente com uma (possível?) tragédia. A segunda, é que a relação espiritual também está posta nesse molde. O filme também é a contraposição de um mundo de fé, cujo Deus nunca se pronuncia, e o mundo dos homens sérios, os filhos desse Deus silencioso.


         A essa narrativa de dois mundos, tragédias é vícios são inseridos: o filho é viciado em maconha e rock, e mal consegue decorar os textos para o seu Bar Mitzvah. O pai é viciado no legalmente correto e de certa forma, também em trabalho. Soma-se a isso a própria culpa que o pai sente por sua passividade e um culpa pior ainda, quando se afasta dela e altera a voz ao telefone, com o serviço de vendas da Columbia Records. A esse universo acrescenta-se o vício em jogos e a doença do irmão de Larry, o vício em beleza de cabelos de sua filha, a infidelidade da esposa, o suborno de um aluno, a tentativa de processo do pai do aluno - sob acusação de difamação, o que é muito irônico, e as cartas anônimas que denigrem a imagem de Larry perante o Conselho da Universidade. Como se pode observar, os irmãos Coen minimizaram em um contexto-mundo único, toda a sociedade e o seu funcionamento: burocracia, corrupção, vício, supérfluos, traição, descrença e lazer auto-destrutivo.

         Com um olhar pesado e rancoroso para o o funcionamento do mundo, Joel e Ethan Coen nos apresenta uma obra pessimista, que retira a voz até da instância divina. O desamparo do homem frente ao mundo e à sua fé, e a obrigação de ter de lidar com isso é a chamada final do filme, que inclusive, pode trazer (pasme!) algo pior, seja um furacão ou a possibilidade de uma doença mortal. É como se os cineastas perguntassem: este é o mundo doente e viciado em que vivemos? Ninguém vai romper o ciclo do silêncio? E aí eles mesmos respondem: o filho de Larry, de frente para o furacão, tenta pagar ao garoto gordo os 20 dólares que lhe deve. Talvez em seu último momento, a única coisa que ele conseguiu pensar em fazer, foi saldar a dívida. O pai, por sua vez, ao ouvir o chamado imediato e urgente do médico, à sua clínica, silencia-se por completo. E a bandeira dos Estados Unidos tremula violentamente ao forte vento que só aumenta (alusão à crise econômica do país?). Fade out. Fim do filme. Se ninguém rompe o silêncio, ou se a maior preocupação é com a dívida, voltamos para o ponto de onde partimos - a dúvida e o título: Um homem sério. Eis a sociedade exposta pelos cineastas. Assim, sob um olhar pasmo para "a câmera que filma os dias", o espectador se vê concordando em viver pacificamente, como as personagens da grande tela. Sérios. Sempre sérios. O que faz com que o filme dos irmãos Coen esteja mais próximo da realidade do que muitos documentários que tem aparecido. Se ninguém fala, fecha a cara, se recusa, faz greve da única coisa que possivelmente pode mudar o destino de alguém destinado a ser levado por um furacão. Talvez por isso o filme tenha sido tão rejeitado e agradado tão pouco: porque toca nas feridas abertas de uma sociedade passiva, que apesar das desgraças, permanece feliz, imersa em tecnologia. Uma típica sociedade de homens sérios.


Artigo originamente publicado no Cine Revista.


UM HOMEM SÉRIO (A serious man, EUA, 2009).
Direção: Joel e Ethan Coen.
Elenco principal: Michael Stuhlbarg, Sari Lennick, Richard Kind, Fred Melamed, Aaron Wolff, Jessica McManus, Adam Arkin, Simon Helberg, Adam Arkin, George Wyner, Katherine Borowitz.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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