14 de out. de 2011

Vertov e a estruturação do cinema experimental



por Erivoneide Barros


Vertov desenvolveu seus experimentos mais fecundos no período em que, de um lado, as vanguardas russas ampliavam plenamente seus projetos e, de outro os cineastas buscavam as especificidades do “cine-alfabeto” como pontuou o próprio Vertov em 1922. O autor diz: “todos aqueles que amam a sua arte buscam a essência profunda da sua própria técnica”1. Nesse sentido, o kinok reivindicava a distância plena da cinematografia das outras artes, almejava delinear as potencialidades da sintaxe do cinema. É desse período, década de 20, que Ismail Xavier recupera os textos apresentados no livro A Experiência do cinema. Cabe ressaltar a influência de poetas da vanguarda, como Maiakóvski, na produção de Vertov.

No manifesto Nós surge um conceito importante da linguagem cinematográfica: intervalo. Jacques Aumont pontua que esse termo, em russo e em francês, pode ser compreendido em três dimensões:

- espacial: como distância que separa dois pontos;
- temporal: como duração que se estende entre dois instantes;
- musical: como relação entre duas alturas de tons.

De acordo com Aumont, o cineasta descartaria a dimensão espacial que, segundo Vertov, estaria atrelada ao cine-drama, concentrando-se em uma relação temporal e visual, aspecto que geraria “um vínculo de continuidade ou uma relação abstrata” (2004, p. 20) entre as imagens, estabelecendo um diálogo entre um fragmento e outro.

Em 1923, na Resolução do conselho dos três, Vertov reforça seu projeto dizendo que “o principal, o essencial é a cine-sensação do mundo”. Assinala a importância do cine-olho, apresentando a câmera como um olho mais aperfeiçoado do que o olho humano, já que ela “colhe e fixa impressões de modo totalmente diverso do olho humano”. Aqui, ele apresenta duas figuras fundamentais para a realização do cine-olho:

Piloto-kinok: é a pessoa responsável por conduzir o aparelho. Segundo Vertov, a potencialidade da máquina câmera unida ao cérebro deste piloto que tem um olhar diferenciado levaria “a representação das coisas [a] revestir-se-á de um frescor inusitado, [...] digno de interesse”.

Kinok-montador: aquele que organiza as imagens coletadas.


Em 1924, Vertov apresenta o nascimento do cine-olho. Segundo ele, esta percepção de cinema surgiu da necessidade de um aparelho que fosse capaz de organizar o universo. Desse modo, o fazer cinema, graças à câmera, revela, “o que o olho não vê”, a fim de mostrar a verdade, as situações não encenadas, as pessoas desnudadas pela câmera.

Por fim, em 1929, temos a maneira como tal projeto é realizado no Extrato do ABC dos Kinoks, em que a montagem surge como um elemento essencial para a organização desse universo coletado. Assinala que o processo de montagem ocorre “desde o momento em que se escolhe o tema até a edição definitiva”. Tendo em vista essa informação, Vertov divide a montagem em três fases:

1. a montagem é o inventário de todos os dados documentais que tenham alguma relação com o tema tratado;
2. a montagem é o resumo das observações feitas pelo olho humano sobre o assunto tratado (momento de coleta das imagens);
3. a montagem central é o resumo das observações inscritas na película pelo cine-olho, ou seja, “o filme cem por cento, [...] o cine-eu vejo”. Esse processo deve se dar sobre os intervalos, “o movimento entre as imagens, a correlação visual das imagens, a transição de um impulso visual ao seguinte”.

Como exemplo desse momento da teoria vertoviana em prática, temos a obra modelo, O homem com a câmera (1929), realizado no mesmo ano em que esse texto foi escrito.

Em sua tese de doutorado, o crítico e cineasta Henri Gervaiseau, ao analisar os filmes A sexta parte do mundo e O homem com a câmera, identifica pelo menos três núcleos básicos da teoria vertoviana:
1. a missão do cine-olho, como um meio de registrar a vida. Assim, o crítico pontua: “Vertov concebe as atualidades como cine-crônicas, construídas com fragmentos de energia autêntica extraídos da vida e organizadas em torno de um tema principal”; “A missão do Cinema olho é criar uma nova forma de cinema que desperte a consciência adormecida do espectador” e, por fim, “[...] o cinema-olho deve tornar possível a introdução dos fatos na consciência do espectador. Evidenciado o caráter engajado do cinema desenvolvido por Vertov.
2. a montagem de registros (visuais e sonoros) como revelador de um mecanismo social: “Em última instância, ao colocar em relação o conjunto das cenas, quer-se demonstrar ao espectador o fato de que ele pertence à coletividade de trabalhadores que compõem a nação, ao mesmo tempo em que se destaca a importância da participação dessa coletividade na construção do evento histórico que representa a edificação da sociedade socialista”.
3. a vida de improviso, ou como afirma Aumont “’mostrar a vida como ela é’ – isto é, não mostrar o mundo inventado e sem consistência da ficção” (2004, p. 113). Ainda, segundo Aumont, ‘mostrar’ e ‘montar’ são equivalentes. Nessa perspectiva, Gervaiseau assinala que o objetivo de Vertov é “demonstrar ao espectador que o inter-relacionamento de fatos realizado pela cinematografia não-encenada é o fruto de uma dupla operação: filmagem e montagem. E que a atração que a visão do produto das duas operações exerce é função da implementação de um dispositivo de projeção pública da imagem”.
Em síntese, Vertov propunha que o cinema fosse capaz de capturar de maneira direta o real, a fim de mostrar a verdade da vida, apenas desse modo o cinema poderia cumprir a sua função de auxiliar o novo homem soviético.

Bibliografia
AUMONT, Jacques. Vertov e o intervalo. In. As teorias dos cineastas. São Paulo: Papirus, 2004. p. 19-22. (Coleção Campo Imagético).

AUMONT, Jacques. A realidade revelada: Vertov, Grierson, Egoyan. In. As teorias dos cineastas. São Paulo: Papirus, 2004. p. 72-75. (Coleção Campo Imagético).

AUMONT, Jacques. O cineasta a serviço da verdade social: Vertov. In. As teorias dos cineastas. São Paulo: Papirus, 2004. p. 112-114. (Coleção Campo Imagético).

GERVAISEAU, H. A identificação do lugar. In. GERVAISEAU, H. O abrigo do tempo. Abordagens cinematográficas da passagem do tempo e do movimento da vida dos homens. Tese de Doutorado em Comunicação. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2000. p. 76-133.

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983.

1 Todas as citações do Vertov, presentes no texto, são extraídas dos textos organizados por Ismail Xavier no volume A experiência do cinema.


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