21 de dez. de 2010

De Olhos Bem Fechados


Obscuridade Sexual

por Cristiano Contreiras


     Por que o ser humano sente necessidade de copular com outrem? O enigmático De Olhos Bem Fechados (1999) transpõe todas as inquietações das fragilidades dos desejos humanos, é um estudo intimista que pauta os confrontos das tentações da carne e do desespero de uma humanidade que não consegue atenuar os ímpetos da libido desenfreada, da carne que corrompe os preceitos de senso de moralidade. Stanley Kubrick aqui expõe seu olhar cuidadoso com um tom erótico, viabilizando o caráter psicossexual em sua última obra na esfera da Sétima Arte. O filme verbaliza a artificialidade adotada pelo ser humano ao contradizer seus desejos carnais, decorrentes de uma sexualidade que é resultado da primária natureza, ao condicionar-se ao matrimônio que supõe pretender uma aparente fidelidade. Afinal, diante do sentimento do amor - existe regra para não sentir-se atraído por outra pessoa? Como conter a libido que parece se predestinar ao que é proibido? O médico Bill Harford (Tom Cruise) é casado com uma curadora de arte, Alice (Nicole Kidman). A união parece perfeita, casamento com uma filha, nove anos de jornada. A construção da atmosfera do casal sofre logo abalos psicológicos quando, após uma festa onde ambos sofrem assédios - ele é alvo de duas mulheres, ela de um cortês magnata mais velho - a fragilidade transparece num diálogo a dois. Se dentro do lar a aparente união parece ser intensa, a desconstrução desse senso é logo demonstrada quando, num dado momento de intimidade, o casal fomenta um jogo de verdades expostas: Enquanto fumam maconha, Alice confessa ter sentido tesão por um outro homem, a atração teria sido fulminante a ponto dela questionar se seria necessário abdicar de seu casamento e até de sua filha para atirar-se num sexo casual com o desconhecido. É então que o mote da traição ganha vigor no roteiro baseado na obra de Arthur Schnitzler, Traumnovelle (História do Sonho), publicado em 1926. A partir daí, perplexo e angustiado, Bill ruma a uma jornada em busca de auto-afirmação sexual, com o ego ferido, numa completa crescente paranóia que desafia até seus próprios limites. Será que a esposa o traiu ou apenas foi um desejo não realizado? Como acreditar já que a mente tende a recriar a realidade como algo mais ainda perverso? Um sonho ou imaginação pode conotar uma traição? O ato de imaginar uma situação sexual constitui esse senso?



     A psicossexualidade é todo o centro narrativo do filme, já que a trama segue os caminhos tortuosos de Bill numa Nova York noturna rumo aos seus instintos sexuais. Em seu desespero, nas dúvidas incontestáveis, sem saber ao certo se foi ou não traído por Alice - eis um homem que busca uma masculinidade já sufocada, atormentada, aparentemente despercebida pela esposa que não o desejou tanto. O ser humano nunca consegue parar de desejar o outro? O ato de sexualidade torna-se um sacramento na ótica de Kubrick, pois representa a importância que o ser humano enxerga nesse âmbito - bem verdade, é indiscutível que a força pela fornicação consegue abalar até os mais racionais. Sexo é instinto, é fome, a carne não percorre a linha compulsória do racional: é o emocional que é verbalizado pelo desejo. E o filme, ao expor um casal em crise de identidade de valores da fidelidade, dos princípios da moral e da boa-conduta numa relação, revela-se mais que uma obra orgástica sobre o sexo - é um recorte sobre hábitos e vontades de humanos imersos em próprios dogmas estabelecidos por uma sociedade hipócrita. Desconstrói os tabus, ao colocar não só o homem com vontades carnais. A mulher também sente desejo animal por sexo. Abstendo-se desses rótulos onde se diz que homem é o que faz sexo e a mulher relaciona-se com o sentimento - Bill e Alice personificam essas desconstruções. Pois, tanto ele quanto ela mostram-se fogosos às taras e vontades, além de lidarem com os conflitos dos sentimentalismos próprios. A traição pode ser reconhecida em todas as esferas sociais, na modernidade das relações contemporâneas (onde não se encontram mais fórmulas e tradições de posturas do relacionamento), até mesmo como apenas uma mera vontade de burlar o sistema do tradicionalismo - sim, há pessoas que apenas sentem-se atraídas por trair por querer fugir dos contornos estabelecidos pelos padrões da sociedade. Mas, fidelidade não é algo que deveria ser essencial numa união? Quão doloroso pode ser a traição? A alma e coração ardem de dor.



     E Kubrick provoca por colocar dois - um homem e uma mulher - em meio aos seus anseios, aos medos e aos perigos de serem mais ainda vulneráveis à promiscuidade, ao sexo desmedido com outras pessoas. Discute os aspectos de uma relação aberta, de como um amor pode ser retraído diante das perdas de confiança e como uma relação não encontra conforto quando a transmissão da traição não parece ter o manifesto da cura. Bill procura prostitutas para envolver-se num coito rápido, enquanto sua mente não cessa de imagens de transas violentas e selvagens de uma Alice traidora - é o típico homem, sob o machismo, que precisa provar a si mesmo que é apto pra fazer qualquer mulher gozar, ter prazer. O homem que procura outra fêmea para provocar orgasmos múltiplos, já que sua própria mulher o descartou desse setor. E Bill procura o sexo absurdo, talvez assim consiga entender as razões do desejo secreto verbalizado por Alice. É o machismo que não consegue compreender as artimanhas da feminilidade contemporânea - afinal, a mulher também deseja e arde de tesão instintivamente. É o homem que sofre ao ser colocado de lado, é o orgulho masculino ferido que não consegue aceitar ser trocado por outro - afinal, o homem pode desejar e ser desejado. A mulher não.

     O ápice da sexualidade no filme atinge quando, na sua odisséia da perversão noturna, Bill vai a uma ritualística orgia secreta. É então que a caracterização, ainda que sutil, ganha contornos mais densos: o aspecto visual e também narrativo da seita sexual é detalhado. Numa espécie de culto epifânico da iniciação de uma orgia, o cenário se assemelha a uma 'missa da luxúria', onde pessoas fantasiadas e mascaradas participam de um bacanal. É neste culto que há as cenas mais viscerais do teor erótico do filme - mulheres nuas, casais transam pelos cantos, caracterizações de sadomasoquismo, ménage à trois. O frisson erótico de Kubrick ganha estilo próprio por externar um erotismo climático sutil, ainda que preenchido de overdoses de personagens que exalam sexualidade - todos parecem predestinados ao desejo, à vontade insana de transar e ser devorado. Interessante a maneira como seu estilo mais clássico aqui se mantém, em cenas longas sem cortes e diálogos ininterruptos que expõem a crueldade da sexualidade à flor da pele.



     A química em cena entre Cruise e Kidman é evidente, ambos com atuações bastante intensas. Bill representa um homem que sente a própria insegurança ao vivenciar os tormentos da traição de perto -"é preciso saber viver por cima das traições reais e as imaginárias"? O filme ainda apresenta questões como sentimento de culpa, reparação, arrependimento que são questões presentes em situações decorrentes de experiências - e também abalos - da traição na esfera conjugal. Serve como alerta, pois todo ser humano (querendo ou não, ainda que muitos não aceitem, até pra si mesmo) tende a sufocar desejos obscuros dentro de si. E, às vezes, a traição consegue ser avolumada dentro de pensamentos que persistem em ideias orgásticas - a mente guarda aspectos da luxúria, infâmia e esquenta de obscenidades que não há como conter. É doloroso como nem mesmo um sentimento de amor pode retirar o instinto sexual que o ser humano tem dentro de si. Nítido tapa na cara da intimidade social, dos relacionamentos superficiais e dos humanos que acabam sendo passionais quando o assunto trata-se de sexo. Qual segredo para não trair? O adultério pode levar o ser às loucuras inimagináveis, capaz de evoluir tormentos eternos numa pessoa. O enredo destrói a ilusão - a idealização de que apenas o amor romântico pode fazer com que as pessoas se casem na ilusão de poder possuir o outro; de que a fidelidade neste sentimento lúdico faria com que não houvesse um desejo direcionado a uma terceira pessoa. E o título mostra isso, Bill e Alice estavam de olhos fechados à realidade, mantendo-se na ilusão. Somente Kubrick pra entrar e destrancar as portas da hipocrisia humana neste belo filme intimista, áurea sexual da existência  humana.


Artigo originalmente publicado no Apimentário.

DE OLHOS BEM FECHADOS (Eyes Wide Shut, EUA, 1999).
Direção: Stanley Kubrick
Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Leelee Sobieski.

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