por Luiz Santiago
Dimitri Kirsandoff nasceu na Estônia, em 1889, e emigrou para Paris em 1923, onde se dedicou aos estudos musicais na Ecole Normale de Musique. Sua primeira experiência no cinema se deu no mesmo ano de sua chegada à capital francesa.
Brumas de Outono (1929) marca o fim da primeira fase da carreira de Kirsandoff, que a partir de então produziria filmes mais comerciais, obras bem distintas das que dirigira sob o movimento avant-garde. É importante lembrarmos que Brumas de Outono é obra de um músico-cineasta, que como tal, irá orquestrar as sequências com equilíbrio visualmente poético – antes mesmo do título, há a inscrição que define o curta, um POEMA CINEMTOGRÁFICO.
A linguagem poética foi um elemento essencial para os grandes realizadores do cinema avant-garde, que sempre procuraram enxergar o cinema também como uma realização lírica. Essa fusão entre palavra e imagem e a capacidade de síntese da poesia, entrarão para o cinema via vanguardas, e perdurarão até o cinema contemporâneo – para citar pelo menos uma obra: Dolls (2002), de Takeshi Kitano.
A poesia, por sua vez, tem ritmo, assim como a música. Ora, sendo Kirsandoff um músico estoniano, e sendo a Estônia um país cuja cultura está muito próxima à cultura russa (após a Segunda Guerra, Stálin anexaria o país à URSS), Kirsandoff experimentará no cinema toda a influência soviética que tivera da música, à composição cinematográfica.
Como, cinema poético? Para responder a essa questão, recorremos à poesia russa, influência inegável de Kirsandoff. Chamamos a atenção do leitor para a capacidade cênica das duas estrofes abaixo, nosso primeiro exemplo, retiradas do poema Os mistérios do ofício, e que mais parecem um trecho de um roteiro:
Como esquecer? Ele saiu, sem reação,
A boca retorcida, em agonia...
Desci, correndo, sem tocar o corrimão,
E o encontrei no portão, quando saía.
“É tudo brincadeira, por favor,
Não parta, eu morro se você se for.”
E ele, com um sorriso frio, isento,
Me disse apenas: “Não fique ao relento”.
Anna Akhmátova, 1911
Vejamos agora um segundo exemplo, onde ressaltamos a capacidade imagética (forma) que dá maior força ao poema, quando enche as ideais dos versos de vida. Nesse caso, escolhi o trecho final do poema Ver, de Kandinski. Observe como a ideia de salto e de rompimento se dão, imageticamente:
[...]
E neste branco salto um branco salto. Em cada
branco salto um branco salto.
E este é o mal, é que não vês o turvo:
no turvo é que ele está.
É aí que tudo começa....................................................
............................................ Rompeu-se........................
Kandinski, 1913
A essas tendências (cênica \ imagéica – formal \ conteudista), dentro do avant-garde francês, Kirsandoff ainda acrescentará a forte ligação que o cinema da Europa Oriental (e extremo Oriente e países nórdicos) possui com a natureza, a fusão e relação do homem e os elementos naturais. É com todos esses ingredientes que o cineasta realizará Brumas de Outono.
O curta narra a história de uma moça que é abandonada pelo seu amor, e passa a definhar, ante todas as cartas e lembranças que conserva dele. A escolha do outono, nesse sentido, foi para intensificar a desolação da personagem: ao passo que a paisagem se acinzenta e umedece, e as folhas caem e a neblina não cessa, a protagonista mergulha cada vez mais em seu desalento. O cineasta faz um eficiente contraponto entre os “dois mundos”: o exterior da casa, e o seu interior aquecido pela lareira, - o único elemento de felicidade que ainda resta à personagem, dando-lhe calor em meio ao duplo frio que a cerca: o frio do exterior da casa é o mesmo que o da alma da jovem abandonada.
Há um pequeno flashback, onde vemos apenas a mão do amado apertar a mão da personagem, e depois o vemos descer as escadas e fechar o portão. Para essa, e todas as sequências tristes, Kirsandoff estabeleceu um modo de fazer o espectador entender que a personagem está chorando: a câmera fora de foco, como se também chorasse.
Na primeira parte do curta, somos apresentados aos dois ambientes (interior exterior da casa) de formas muito distintas: ao filmar o externo, o diretor usa planos de diversas durações, e muitos ângulos, mas, ao passar para o ambiente interno, há uma total economia de tudo, como se a vida estática se enraizasse também na forma como é mostrada, contaminando-a com sua imobilidade.
Já na segunda parte, logo após o flashback, a personagem sai da casa, e sua interação com o ambiente é total: a câmera foca seus pés por entre folhas caídas e pedras, seu corpo encostado em uma árvore, suas pernas em movimento ao lado do rio.
O sentido deste curta-metragem de 12 minutos é dúbio. Não sabemos de fato qual é o “destino” da personagem. Se o outono simboliza o seu estado de espírito, logo concluímos que um período pior se aproxima: o inverno. Se as brumas simbolizam um estado indefinido, onde não se consegue divisar nada, concluímos que o estado de dúvida durará um pouco mais, antes de dissipar-se. Se o rio, mostrado desde o início do filme, simboliza a corrente da vida e da morte, a renovação, a mudança perpétua (Heráclito), podemos afirmar que esse momento desolador também irá passar, mas, qual será o estado futuro da triste jovem, é impossível definir.
Kirsandoff faz um verdadeiro poema cinematográfico sobre o sofrimento e a passagem do tempo e das coisas, em um curta-metragem experimental que, apesar de manter uma narrativa linear, em nada fica aquém das propostas vanguardistas do período em que foi realizado. Uma obra sensível e esteticamente belíssima, um dos melhores filmes-poema que já vi.
BRUMAS DE OUTONO (Brumes d'automne, França, 1929)
Direção: Dimitri Kirsandoff.
Elenco Principal: Nadia Sibirskaia.