2 de fev. de 2012

Arca Russa / Russkiy Kovcheg (2002)

  

Arca Russa ou o resgate da história

por Erivoneide Barros


Aleksander Sokúrov, na 35ª mostra internacional de cinema de São Paulo, apresentou seu novo longa metragem, Fausto (2011), vencedor do Leão de Ouro, no Festival de Veneza 2011, na categoria melhor filme estrangeiro. No entanto ainda é seu Arca Russa que faz a crítica repensar o que é cinema e, sobretudo, o que é montagem.

Em um único plano-sequência de 96 minutos, Sokúrov abre uma das arcas da Rússia, o Museu Hermitage, para convidar o mundo a refletir sobre a questão russa. Desde o final do século XVIII, a relação entre Rússia e Europa é gradativamente pensada e explorada pelos escritores russos. Ressalta-se como exemplo desta reflexão as Notas de inverno sobre impressões de verão de Fiódor Dostoiévski. Dostoiévski, ironicamente, explora outro lado da Europa, contrapondo os supostos costumes bárbaros da Rússia à vida não comentada da Europa, como ilustra a análise que o autor faz das ruas repletas de “quartos de pouca permanência” e a circulação de “mulheres públicas” em Londres e Paris.

Embora a relação suscitada pelo título possa imediatamente atrelar-se a arca criada por Noé no primeiro livro do Pentateuco, ousamos a aproximação com outra arca, indicada no livro de Êxodo. A arca da aliança foi construída a partir das orientações divinas, tanto no que se refere ao formato, tamanho, quanto à sua função. Segundo a mitologia cristã, a arca deveria carregar as tábuas da lei, a vara de Aarão e um vaso de maná como uma espécie de museu ambulante a fim de que o povo não se esquecesse da aliança que Deus tinha com eles nem dos sinais e prodígios que o Senhor havia realizado.

Sókurov parece abrir tal arca, agora a da história russa, para refletir seu passado e sua incidência sobre o presente. A priori, vale lembrar que o Museu Hermitage não é um museu exclusivo de obras russas. Situado em São Petersburgo, o museu foi idealizado por Catarina, a Grande, que deu continuidade aos projetos de Pedro, o Grande, de modernizar a cidade de São Petersburgo e torná-la um grande centro cultural como Paris. Desejosa de tornar-se popular, a imperatriz consome a cultura europeia trazendo para a Rússia a cultura livresca e pictórica, principalmente da França. É ela quem encomenda e inaugura a escultura de Falconet, O Cavaleiro, na comemoração do centésimo aniversário da ascensão de Pedro ao trono. Sob o governo de Catarina, no século XVIII, a Rússia surgiu como uma grande potência.

É esse cenário que Sokúrov manipula com maestria. O narrador, o próprio cineasta, desloca-se no tempo saindo do século XXI (2001) e ambientando-se no século XIX sem saber aparentemente como. O narrador não reconhece o lugar em que está, nem identifica o comportamento das pessoas que surgem em sua frente. A narração predominante da primeira pessoa gera a inserção direta do espectador na cena e na história coletiva da Rússia, assim o espectador é convocado a tornar-se parte e assumir o seu lugar na História. Desse modo, a película é um amálgama de tempos e espaços.

A figura de Pedro, o Grande, é vista com ambivalência. Como idealizador de São Petersburgo, o czar é analisado por duas facetas, aquele que “permitiu os russos se divertirem” sem deixar de ser considerado “como um tirano”. Durante todo o filme, percebe-se de modo sutil esse jogo de dualidade que remete ao modo como a Rússia foi vista e analisada por seus filhos sem desconsiderar o olhar exterior.

Para marcar ainda mais essa visão ambivalente, surge a figura do Marquês de Custine que caminha com o narrador pelas salas do museu. As falas do personagem foram retiradas da obra La Russie en 1839, escrita pelo Marquês após o período em que esteve na Rússia.

Longe do suposto saudosismo apontado por muitos críticos, o diretor busca compreender a Rússia de antes e a de hoje. São iguais? O que permaneceu? Também não se trata de pessimismo – “Eles são surdos: o passado não pode ser alterado” – mas sim de uma tomada de consciência sobre o que se é e a necessidade de prosseguir. Sokúrov parece não buscar a Rússia dos csares, porém almeja trazer à tona a cultura perdida e, em alguns momentos, preterida pelas questões políticas. Declarações como “A Rússia é como um Teatro” induzem a reflexão dos grandes acontecimentos encenados, das grandes tragédias, no sentido shakesperiano.

Conforme pontuou Berman (1986), São Petersburgo nasceu como “Uma janela para a Europa”, imagem retomada pelo diretor no fechamento do filme. Após o grande baile que marca o fim da dinastia Romanov e assinala a revolução, a câmera é conduzida até uma espécie de janela para o mar em que o narrador faz uma declaração que sugerimos dar voz a todos os participantes da história russa: “Estamos destinados a navegar para sempre. A viver para sempre”.

          Não pretendemos limitar as várias possibilidades de leitura suscitada pela obra, porém não há como evitar o olhar assertivo e lúcido do diretor sobre as questões políticas russas e o lugar do país entre Ocidente e Oriente. Assim como a arca da aliança que não permitiu ao povo de Israel esquecer sua origem e história ao longo de sua trajetória, a arca russa de Sokúrov é uma elegia a um período decisivo da Rússia que marcou a história mundial.


Bibliografia

BERMAN, Marshall. Petersburgo: o modernismo do subdesenvolvimento. In. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L.Ioriatti. São Paulo: Cia das Letras, 1986. p. 167-270.

VOLKOV, Solomon. São Petersburgo: uma história cultural. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997. 


ARCA RUSSA (Russkiy Kovcheg, Rússia, Alemanha, 2002).
Direção: Aleksandr Sokúrov
Roteiro: Aleksandr Sokúrov, Anatoli Nikiforov, Svetlana Proskurina e Boris Khaimsky.
Elenco: Sergei Dontsov, Maria Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Maksim Sergeyev, Natalya Nikulenko.
Duração: 1h39min.

FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!


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