17 de jan. de 2011

Amarás a Deus Sobre Todas as Coisas (1988)


DECÁLOGO 1
por Luiz Santiago


     Nascido em Varsóvia, em 1941, o diretor polonês Krzysztof Kieslowski é uma das personalidades cinematográficas mais famosas de seu país, ao lado de Andrzej Wajda e Roman Polanski. Formado na Escola de Teatro e Cinema de Lodz, começou a dirigir filmes em 1966, sendo O Bonde, um curioso curta-metragem, a sua estreia. Já no filme seguinte, O Escritório (também de 1966), o diretor trabalharia com um gênero que seria predominante na fase inicial de sua carreira: o documentário. Em seu trabalho de conclusão de curso, Da Cidade de Lodz (1968), a tendência documental permanece, e embora esse filme não seja um documentário, o modo como o diretor aborda a cidade, sua história, e seu funcionamento social, flerta com esse gênero.

     Geralmente marca-se A Cicatriz (1976) como um divisor de águas para a nova abordagem fílmica do diretor, que, embora tenha continuado a fazer documentários, modificou sua visão cinematográfica. Um certo desencanto e uma pendência estrutural para questões éticas se tornaram o sustentáculo de seus filmes de ficção, algo que podemos ver nas principais obras após essa mudança: Amador (1979), Sem Fim (1985) e Sorte Cega (1987).

     O projeto que marcaria a carreira de Kieslowski, e que o tornaria conhecido no Ocidente, foi produzido e realizado para a TV polonesa. A proposta inicial da rede era que cada um dos mandamentos do Antigo Testamento fosse entregue a um cineasta diferente, a fim de dirigirem um episódio com menos de uma hora de duração, contendo uma aplicação atual dos mandamentos bíblicos. Desenvolvendo o roteiro ao lado de Krzysztof Piesiewicz, Kieslowski reclamou para si todo o projeto, dirigindo então os dez filmes que compõem o Decálogo, uma das maiores obras já realizadas para a televisão, e da qual saíram dois longas metragens: Não Matarás e Não Amarás.


     Os Dez Mandamentos dividem-se em três categorias: leis morais, civis e cerimoniais, e em cada uma delas, Deus fazia uma proibição ou uma ordenança ao povo de Israel. Na visão de Kieslowski, ao invés da obediência a essas leis, a sociedade contemporânea se estrutura em sua desobediência, recebendo as punições divinas previstas. É importante observar que o diretor não repetiu os protagonistas em nenhum episódio, embora todos residam no mesmo conjunto habitacional em Varsóvia, e uma personagem figurante muito peculiar e silenciosa apareça em nove dos dez capítulos – seria um anjo, uma representação divina que espera o homem lembrar-se de cumprir as leis de Deus?

     O Decálogo 1 explora o segundo mandamento: “Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.”. A imagem condenada no mandamento é representada, nesse episódio, pelos ícones do computador, a grande invenção tecnológica que está diretamente ligada à ciência, a negação de Deus, e geradora de imagens por excelência. O pai de Pawel é um professor universitário que não crê em Deus nem na existência de uma alma, nem em um propósito para a vida. A exatidão, o cálculo, a programação exata dos acontecimentos, a medição da vida é a sua linha de raciocínio. A lógica matemática não compreende a presença de Deus, mas através de seus ícones, os únicos fornecedores da verdade, ganha a admiração cega e subserviente dos cientistas. E eis o descumprimento da segunda parte desse mandamento: “Não te encurvarás a elas nem as servirás”.

     Kieslowski procurou explorar ao máximo a dualidade do amor, da imagem e da adoração ao não-deus. Pawel é certamente o foco do amor central do filme, e em segundo lugar, o criador de ícones, o computador. Temos aqui duas imagens como substituição de Deus, e este só está presente no discurso de Irena, a tia de Pawel, que parece desculpar-se de sua fé ao sobrinho, quando narra a criação religiosa que ela e o irmão tiveram, e o caminho da ciência seguido por ele. A única “manifestação empírica” de Deus no Decálogo 1 encontra-se na cena final, quando, após o silêncio do “falso Deus” (o computador, para quem Krzysztof pergunta o “por quê” de tudo aquilo), vemos a cera derretida de uma vela cair como lágrimas de um ícone no altar. Por fim, a resposta de Deus: muda e simbólica. Para aquele que amou em absoluto uma criança, e que especializou-se em criar ícones, a única coisa que o Divino consegue fazer é ter compaixão.

     A vela que se derrete aproxima-se dramaticamente do derretimento do gelo no lago, e a oposição de temperatura entre ambos dá a entender a presença da vida e da morte – embora todos os elementos sejam inanimados: o gelo, a vela, o ícone. Observe que quanto mais chegamos próximos ao epílogo do episódio, mais imagens vão aparecendo. Como se não bastasse, a abertura e o fechamento do Decálogo 1 é dada a partir da representação da imagem de Pawel na televisão, ou seja, a insistência na reificação da figura do garoto. E por que não adicionar a essa lista o próprio objeto fílmico, o episódio, um filme para TV, a projeção rápida de imagens com significado religioso? Para Kieslowski, a imagem e sua importância divina em nossa sociedade é a inevitável e constante desobediência ao segundo mandamento.


     Sabemos que para cada um dos episódios, Kiselowski empregou um diretor de fotografia diferente. O visual do Decálogo 1 dialoga com o branco acinzentado do inverno na cidade e os interiores sempre com a luz oposta à do exterior. O filme é visualmente frio, e consegue sustentar o ar de descrença total a que o protagonista chega. Para ele, a ciência e Deus falharam. Lembremos que quando a vizinha diz que “o gelo do lago derreteu”, ele afirma diversas vezes que “não, é impossível”, porque havia calculado a espessura do gelo no dia anterior. O que causou o derretimento? Certamente não foi a fogueira acesa na margem. Algum fator externo não explicado em cena contribuiu para que o gelo derretesse, e a tragédia se desse. Kieslowski insere aí um outro ponto importante que perdurará durante todo o Decálogo: a influência e ocorrência do acaso.

     Trabalhando de forma dialética com as imagens, Kieslowski guia as suas personagens rumo ao abismo da descrença. A punição de Deus já prevista para o descumprimento do segundo mandamento faz-se sentir em tremenda dor: “porque eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus ciumento, que visito a maldade dos pais nos filhos...”. E é com essa ameaça e desesperança que Kieslowski termina a sua primeira versão dos mandamentos na atualidade. Se há alguma dúvida sobre o que resta, a resposta virá no acontecimento do Decálogo 2, um complemento desse início, posto que pronunciar o nome de Deus é também aludir a uma imagem, por isso mesmo temos o terceiro mandamento: Não pronunciarás o santo nome de Deus em vão.


* Para o Nelson, do Filocinética, que me propôs a escrita do Decálogo.


DECÁLOGO 1 (Dekalog, Jeden, Polônia, 1988).
Direção: Krzysztof Kieslowski
Elenco: Henryk Baranowski, Wojciech Klata, Maja Komorowska, Artur Barcis, Maria Gladwska, Ewa Kania, Aleksandra Kisielewska, Aleksandra Majsiuk, Magdalena Mikolajczak.


FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.

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