23 de nov. de 2010

E La Nave Va



por  Luiz Santiago


Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, – e acaso para reconciliar-se com o céu – compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
[...]
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

Machado de Assis.


     O compositor Nino Rota foi responsável pela trilha sonora de todos os filmes de Federico Fellini realizados entre 1952 (Abismo de um Sonho) e 1979 (Ensaio de Orquestra). Com o falecimento do compositor, em abril de 79, Fellini ver-se-ia em maus lençóis, justamente porque na última parceria com Rota, iniciara um pequeno período de filmes que teriam a música como principal agente dramático.

     A ausência do compositor preferido e amigo pessoal fez com que Fellini voltasse seus olhos (e ouvidos) para uma arte tipicamente italiana, mas que nunca estivera em um filme seu com grande importância: a ópera. O resultado desse olhar gerou aquele que é considerado o último grande filme do mestre italiano, E la nave va (1983), única fita do cineasta com música completamente não original, e um verdadeiro desfile de personas-cantores excêntricos, rodeados pelo primeiro grande conflito do século XX: a Primeira Guerra Mundial.


     Ironicamente, o filme é um cortejo fúnebre. O navio Glória N. parte com a nata da cena operística mundial em direção à Ilha de Erimo, para espalharem sobre o mar que a rodeia as cinzas da maior diva de todos os tempos: Edmea Tetua¹. Matronas fellinianas, clowns, tenores, sopranos, pervertidos sexuais, uma equipe de jornalismo que registra a viagem, e um rinoceronte, são passageiros desse navio que mais parece a alegoria medieval retomada por Foucault quando estudou a história da loucura: a nau dos loucos².

     Sabemos que para Fellini o cinema era uma espécie de bastidor revelador da vida, muitas vezes confundindo-se com a realidade. Com efeito, em dado momento da projeção de E la nave va, somos apresentados a situações tipicamente encenadas, e em outro, à vida sem representação, com as fraquezas e segredos dos passageiros postos diante da objetiva voyeur, da qual o espectador é cúmplice.

     E la nave va não é apenas uma pseudo-ópera montada para cinema de estúdio, mas também um primoroso exercício de metalinguagem e um diálogo com o cotidiano artístico-musical. Se em Os Palhaços (1970), Fellini retomou no circo a metalinguagem cinematográfica trabalhada desde o seu primeiro longa, Abismo de um Sonho, e que voltaria em suas duas obras-primas, La Dolce Vita (1960) e 8 ½ (1963), em E la nave va, a confusão entre navio-palco, realidade-ópera, discurso-libretto, personagem-cantores serve para elevar esse nível artístico-cultural ao patamar mais plural possível. Lembremos que o cortejo fúnebre do Glória N. é registrado por uma equipe de televisão³, um terceiro formato narrativo dentro da mesma película.


     O jogo de criação cênico-narrativa começa já na primeira sequência do filme. Em P&B (banhado em sépia), vemos os passageiros do navio chegarem ao porto. Enquanto nas imagens desfilam os rostos, olhares e personalidades, ouvimos o ruído do projetor em funcionamento. Somos, nesse início, espectadores passivos de uma apresentação: os passageiros do Glória N. chegando ao cais. O primeiro desvio dessa condição acontece quando o Senhor Orlando, jornalista encarregado de cobrir a viagem, aparece pela primeira vez. Em uma sequência de bastidor, o vemos arrumar a gravata, e um intertítulo nos informa o que ele resmunga impaciente: “Dizem: faça a crônica conte o que acontece... Mas quem é que sabe o que acontece?”. Em seguida, após trocar de chapéu diversas vezes (e ficar muito parecido fisicamente com Fellini), olhando em direção à câmera, brincando com o espectador, o jornalista começa sua matéria, também mostrada num intertítulo: “Quem, por acaso, passasse pelo cais 10 numa manhã de junho de 1914, veria que...”. Mas tanto o jornalista quanto o cinegrafista são atrapalhados pelos transeuntes e curiosos e todas as idades, não podendo concluir a chamada externa.

     É a partir dessa indicação de uma segunda câmera filmando o que inicialmente se via que faz o espectador responsável pelos segredos revelados a partir de então. Somos um observador onipresente. No decorrer do filme, esse caminho de representação da TV versus a  representação cinematográfica, que futuramente terá a representação operística no páreo, não encontrará limites. Já em avançada trama, a câmera invadirá o quarto vazio de um dos hóspedes. Não há ninguém em cena. Porém, minutos depois, o Senhor Orlando, conversando com espectador sobre o Conde que ocupa o tal quarto, dirá: “Vocês acabaram de ver no quarto dele”.

     A passagem do Primeiro Cinema para o Moderno, ou, da realidade sem cor e som que vemos nos primeiros minutos de E la nave va, acontece quando o ruído do projetor diminui, e diversos sons realistas (primeiro os mecânicos, depois as vozes) acompanham as imagens. Ao sexto toque da banda para o embarque das cinzas da diva, o insosso tom sépia desaparece lentamente e a cor toma todo o quadro. Um maestro aponta para um canto cego e o piano inicia uma ária. Ao subirem as escadas do Glória N., os passageiros cantam o tema do Destino de La Forza del Destino, de Giuseppe Verdi. Outras óperas do compositor também são usadas, bem como obras de Bellini, Tchaikovsky e Rossini.


     Se fora do navio a câmera do cineasta mostrava-nos as personas-objeto em trânsito, durante a viagem, a revelação das verdadeiras personalidades, temores e defeitos, ganham a atmosfera. A viagem rumo a Erimo é um desfile de egos. Sobra espaço até para a luta de classes, quando os cantores vão visitar a casa de máquinas do navio e um dos trabalhadores pede: “Idelbranda, cante para nos consolar!”. Dá-se início a uma disputa grotesca de tessitura vocal entre as personagens, que são filmadas cada vez em planos mais próximos, atingindo o clímax do ridículo quando os primeiros planos captam as bocarras abertas, os desvios dos olhos e maneirismos das mãos. Tal disputa faz-me voltar ao capítulo IX de Dom Casmurro, e retirar esse trecho que resume perfeitamente toda a sequência, já fazendo uso da metáfora ópera-vida que retomaremos mais adiante:


A vida é uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...


     A explosão da Primeira Guerra Mundial irá alterar o rumo de toda a história, e o roteiro perpassa os temas da política e da diplomacia em meio a toda a fauna felliniana, inconformada com o resgate que o capitão do navio dera a um náufrago sérvio. Se na casa de máquinas a oposição de classes sociais dera-se no campo lírico, com a chegada dos náufragos isso fica mais evidente: enquanto a elite do navio faz sua refeição com o desdém que lhe é típico, os miseráveis penduram-se nas janelas e a observa com olhares famintos. Importante ressaltar que na dinâmica interna do filme, os ricos passageiros parecem peças de vitrine fora da realidade, observados de fora pelos maltrapilhos europeus orientais.


     Apenas na arte há a possibilidade de uma relação “amigável” entre os dois povos / classes sociais, e esse momento se dá quando os sérvios executam e dançam uma czarda. A dança cigana logo chama a atenção de alguns musicistas que afirmam “já ter estudado aquilo”. Como é típico dentro do do capitalismo e da própria mentalidade burguesa, o exótico tem respeito pela possível comercialização ou por servir de escada para estudiosos que querem ensinar a um povo a sua própria cultura - coisa que vemos acontecer no filme.

     A guerra é o prenúncio do fim, mas não vemos a derrocada do palco das representações, o navio Glória N.. Ciente da condição de ser a poderosa registradora de toda a vida (a lente do Deus-Fellini, que observa seu roteiro ser encenado nesse enorme navio-vida), a câmera na grua afasta-se ainda enquanto o navio torpedado pelos austro-húngaros é visível, e vemos toda a equipe técnica por trás do mar de plástico: os câmeras, o fotógrafo, o técnico de som, a equipe de iluminação e efeitos visuais, e o próprio Fellini. O cinema se revela, se despe diante do espectador, mostra que tudo o que se passou na projeção foi uma representação da vida. E como que para sustentar a tese em tom irônico, plantando um ciclo vicioso, voltamos à cor sépia, ao ruído do projetor, ao som abafado. A confissão descabida do jornalista e a narração do fim das outras personagens contrasta com sua versão muda do início do filme. A câmera então se distancia do barco com o paquiderme. Uma íris se fecha, e o piano embala os créditos finais. Assim como começou, o filme termina com um barco em direção a algum lugar...


     Em E la nave va Federico Fellini dirigiu o seu filme mais próximo de Jean-Luc Godard. Sua desconstrução do objeto e produto fílmicos, o uso preciso e pontual da música, a opção pela metalinguagem como elemento corrente, os jogos de cena, a fina ironia e a crítica social estão presentes nesse navio, assim como nos filmes do mestre francês. Mas em Fellini, a teatralização circense da direção dá um tempero todo especial e esse modelo narrativo de anti-cinema.

     Arte e fotografia corroboram esse mundo polissêmico que vemos na tela. No primeiro caso, a própria estrutura cenográfica já é digna de louvor, posto que é um filme de estúdio que não quer parecer ser feito em outro lugar, mas mesmo assim é extremamente autêntico e “realista” (como os musicais de Carlos Saura). A fotografia termina o trabalho, dando a cada espaço, em momentos diferentes, variadas tonalidades de cor – embora o seu uso aqui não seja tão genial quanto em Julieta dos Espíritos (1965).


     E la nave va é um filme para poucos. Quem não aprecia ópera ou não está acostumado com o cinema de Fellini deve correr dele como o diabo da cruz, para que não saia sequelado (mais por ser “atacado pela obra”, que qualquer outra coisa) dessa que é uma das melhores películas da fase final do cineasta, e um exemplo de que em cinema se pode fazer tudo, basta perceber essa fluidez meio heraclitiana da vida que segue como um barco num mar sem fim; ou como uma ópera épica em um palco do tamanho do mundo, captada por diversas lentes, ângulos, e em diversos formatos.

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1 – Possivelmente uma alusão felliniana àquela que foi a maior soprano do século passado, Maria Callas, falecida em 1977, e que teve suas cinzas espalhadas no mar Egeu.

2 – Também conhecida como “a nau dos insensatos”. Há uma pintura do mestre flamengo Hieronymus Bosch que trabalha o mesmo tema, e também um filme de Stanley Kramer de título homônimo à alegoria, lançado em 1965, com Vivien Leigh, Lee Marvin e José Ferrer, no elenco.

3 – Fellini já usara a TV no filme anterior, Ensaio de Orquestra, e voltaria a usar em dois dos seus três filmes seguintes: Ginger e Fred (1986) e Entrevista (1987).


E LA NAVE VA (Idem, Itália, França, 1983).
Direção: Federico Fellini
Elenco: Freddie Jones, Barbara Jefford, Victor Poletti, Peter Cellier, Elisa Mainardi, Norma West, Paolo Paoloni, Sarah-Jane Varley, Pina Bausch.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!



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