26 de jan. de 2011

Não Usarás o Nome de Deus em Vão (1988)



DECÁLOGO 2
por Luiz Santiago


     Os dois primeiros filmes do Decálogo fornecem para o espectador uma visão geral de toda a série. Salvo as questões técnicas, o diretor Krzysztof Kieslowski estabeleceu uma rede de conexões e simbolismos que se espalham por todos os episódios, mas não há, em toda a série, uma dupla de filmes que se oponham tão fortemente e que sejam tão ilustrativos para a obra completa, como a dupla Decálogo 1 Decálogo 2Antes de partirmos para uma análise mais pontual do segundo filme, é importante que entendamos o por quê ele é oposto ao seu predecessor, e como, juntos, conseguem dar uma visão geral de todo o Decálogo.

      O ponto central da narrativa nesses filmes é a diferença da punição divina frente a desobediência aos mandamentos. No Decálogo 1, vimos que a criação dos ícones é punida com a morte. No Decálogo 2, o castigo não é físico e sim moral, resultando em uma gravíssima crise ética (a coluna de toda a série) e possíveis consequências desastrosas para os protagonistas. O Deus do Decálogo 2 não está preocupado em “visitar a maldade dos pais nos filhos”, mas sim em “não ter por inocente o que tomar o seu nome em vão”. Entre os oito episódios subsequentes, estarão espalhadas essas duas visões punitivas. Para completar a teia de relações, destacamos a forte oposição simbólica entre os dois primeiros episódios.


     No Decálogo 1, o motor da narrativa é a morte; no Decálogo 2, embora a morte esteja em evidência, o motor da narrativa é a vida. Perceba que o elemento trágico não se ausenta, mas a visão de Kieslowski salta ao comum, pensa em uma outra forma de punição divina para os pecados contemporâneos, e embora use a vida como premissa do segundo filme, destaca a sua ameça fatal. Não há nada mais angustiante do que viver ameaçado pela morte. Ao mesmo tempo, o paradoxo: tudo em torno dessas personagens pulsa de vida. E eu penso que aí está a primeira punição de Deus: por ter tido seu nome usado em vão, ele impede que a morte se aposse de tudo o que ameaça.

     O roteiro do Decálogo 2 apresenta uma complexidade maior que a do filme anterior – não de entendimento, mas de elementos a serem considerados. Temos a história de Dorota Geller, uma violinista que vê seu marido à beira da morte, e ao envolver-se com um amigo da família, engravida. Sabendo que não resta muito tempo de vida ao cônjuge, Dorota pensa em levar a gravidez até o final e seguir o romance com o amante. Mas ao perceber que a morte de Andrzej não acontece, a resolução é abortar a criança. Uma vida só poderia acontecer com a anulação da outra. A sentença esperada por Dorota vem com a jura do médico de Andrzej, afirmando que o paciente certamente morreria, dado o progressivo avanço da doença. A infração do terceiro mandamento, “Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão [...]” acontece justamente nesse momento. E aqui presenciamos mais uma genial armadilha criada por Kieslowski e Piesiewicz: o médico jura, infringindo o mandamento, mas com isso salva uma vida. Entretanto, no julgamento divino, ele não é inocente. E para contradizer a palavra do médico, que é “o deus da ciência do corpo”, o Criador Divino resolve mudar o estado de saúde de Andrzej. Não vemos uma melhora progressiva do enfermo, mas Kieslowski deixa bem claro o momento em que essa “cura milagrosa” acontece: vemos uma abelha sair de dentro do líquido de um copo, “escalar” com dificuldade a colher imersa no recipiente, e enfim, chegar à borda, sã e salva – simbolicamente, o mesmo processo efetuado pelo homem condenado à morte por uma doença incurável. Sem dúvida essa é uma das metáforas visuais de sentido dramático mais belas já realizadas.


     O compromisso de Krzysztof Kieslowski como diretor, sempre foi guiado por um forte caráter humanista. Uma abordagem pontuada de sentimentos sem ser ideologicamente passional tornou-se a sua regra. No Decálogo, e a partir de A Dupla Vida de Véronique (1991), essa regra alcança sua maturidade. As relações humanas, seus encontros aparentemente coincidentes e a gama incontável de símbolos em torno das pessoas, passam a mesclar-se com à técnica de direção de Kieslowski, e é extremamente prazeroso ver como o diretor consegue sutilmente elencar o máximo de pontos simbólicos, para juntá-los, opô-los ou anulá-los mais adiante – um desses exemplos é o salvamento após o desastre do barco em A Fraternidade é Vermelha (1994). Nos decálogos, o diretor optou por fazer dos dois primeiros episódios uma espécie de matriz de símbolos para a série, contendo todas as suas intenções artísticas e ideias em geral.

     A forma de apresentar o espaço nos dois primeiros decálogos, antes de partir para uma tomada interna, é idêntica: a câmera olha para cima, focalizando uma das janelas do prédio. E também em ambos os episódios há a presença de animais mortos: um cão, no Decálogo 1 e um coelho, no Decálogo 2. Nesse último caso temos mais uma indicação paradoxal: o coelho, símbolo da fertilidade, aparece morto, e de um modo muito intrigante, o homem que acha o animal acredita que ele pertence ao médico protagonista: tirem daí as suas conclusões. O interessante é que das personagens do Decálogo 2, nenhum ser humano morre, apenas um animal e plantas: o coelho, o cacto do doutor, a planta que Dorota desfolha e torce o galho. Em oposição ao Decálogo 1, onde o ambiente externo muda (o lago é focado logo na abertura com uma fina camada de gelo em sua superfície, e termina completamente congelado), nesse segundo episódio as mudanças se dão de forma particular e pouco perceptível. Kieslowski parece dirigir o seu olhar para um viés mais fechado e particular da vida, o que é dramaticamente justificado, já que a personagem principal esconde a gravidez resultante de um ato adúltero – embora siga a linha de um mandamento por filme, podemos perceber que existe a desobediência de diversos outros mandamentos.


     A fotografia, assim como a música no Decálogo 2, é um catalisador de emoções. Percebemos que a cada período do episódio, uma obra musical melancólica diferente guia o ator em cena, e o ambiente é pintado de duas formas: o contraste dialético e a adequação sentimental. No primeiro caso, temos o exemplo da sequência em que Dorota conta o seu problema para o doutor. Há uma oposição entre o estado de espírito da mulher com aquela luz quente e saturada que vemos cobrir o quadro. No entanto, as explosões de luz em ambientes sombrios (sempre com Dorota em cena) não estão ligadas a ela, mas sim ao bebê. Há também uma diferença simbólico-dramática entre a iluminação e a direção de arte da casa de Dorota e do médico. No primeiro caso, parece que estamos diante de um palácio de gelo urbano. Sempre na penumbra e raramente bem iluminada, as cenas internas no apartamento da protagonista exprimem muito bem o seu estado de espírito e aquilo a que ela dá mais atenção: a família. As fotografias nas paredes, a devoção permeada de culpa ao marido moribundo, o impasse do aborto, tudo isso nos mostra a ligação de Dorota com a instituição familiar, ao mesmo tempo que ressalta a sua necessidade de afirmação como mulher: ter o filho, caso o marido morra, seria a sua suprema felicidade, porque, como ele mesma diz, jamais conseguira engravidar antes. Nessa mesma linha de “pintar emoções”, o Decálogo 2 termina com uma intrigante indicação. Andrzej, recuperado, vai até a sala do médico para agradecer-lhe pelos cuidados. O doutor está plenamente iluminado, embora sob a meia-luz de uma luminária de mesa. Mas Andrzej aparece completamente no escuro, e mesmo quando senta-se à frente do doutor, parte de seu rosto permanece fora do campo de luz. A amargura nervosa com a qual ele diz ao médico que terá um filho, parece nos insinuar um quê de Jekyll e Hyde.

     Os figurinos, no Decálogo 2, são sempre muito escuros. O marrom e o preto são padrões em todo o episódio, com uma ou duas variações tonais. O sentimento de tristeza, dúvida ética, e difícil decisão, são exteriorizados através da cor das roupas de Dorota ou do médico. Mas há uma diferença entre o impasse vivido por um e por outro. Como poderíamos diferenciar, já que externamente, são idênticos? Nesse caso, é necessário olharmos para outra coisa: as bebidas. O médico só consome bebidas quentes, ao passo que Dorota, apenas bebidas frias, ou que ela deixa esfriar. Há uma indicação verbal disso quando ela encontra um amigo de seu amante. Ele diz: “o seu café esfriou”, sentença que é repetida pela protagonista. Se exteriormente a postura simbólica de ambas as personagens se assemelham, o diretor nos fornece outros elementos para diferenciá-las. Caso o leitor precise de mais um, lembre-se que logo no início do episódio vemos o médico derrubar água quente na banheira, a fim de esquentar-se, enquanto Dorota não tem contato nenhum com algo que transmita calor, com exceção do fogo para aceder seus cigarros. E nesse ponto temos mais uma oposição com o Decálogo 1, onde o gélido ambiente externo é compensado pelo acolhedor interior das casas, quando no Decálogo 2, além do frio externo, o aquecimento central do prédio não funciona.


     Essa segunda parte da série Decálogo é simplesmente genial. O término do filme nos deixa absolutamente presos à trama, e sentimos raiva, dó, e uma sensação de que estamos realmente sujeitos a tudo. Kieslowski conseguiu fechar aqui todos os pequenos temas que espalharia pelo restante da série. Sua cartada final, certamente passou despercebida por muita gente, é o fato de que o médico, um representante de Deus na terra, já que detém praticamente o mesmo poder que este sobre o funcionamento e cura do corpo humano, é o único personagem do filme que não tem nome. Diferente de Deus, que se enciuma do uso despropositado de seu nome, o médico não corre esse risco. Como humano, ele é culpado por quebrar um mandamento. Como um poderoso sobre a imagem e semelhança de Deus (o Homem), ele não corre o risco de ser profanado. Para Kieslowski, o único modo de prevenir o uso inadvertido de um nome é não o conhecer. Ser tão impessoal quanto a personagem angélica e misteriosa, que neste episódio é um enfermeiro do Hospital, parece ser uma saída para não pecar. O problema é que essa indiferença às convenções pode gerar a transgressão de um outro mandamento, o tema do Decálogo 3: Guardarás Domingos e Festas Sagradas. Como a transgressão funciona em um ciclo vicioso, percebemos que quanto mais avançamos nos episódios, pior se torna a condição dos pecadores. Não há fim para mal. E não há quem faça o bem, nem aos olhos dos homens, nem aos olhos de Deus. Kieslowski nos prova isso com o seu Decálogo.


DECÁLOGO 2 (Dekalog, Dwa, Polônia, 1988).
Direção: Krzysztof Kieslowski
Elenco: Krystyna Janda, Aleksander Bardini, Olgierd Lukaszewicz, Artur Barcis.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!


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