por Luiz Santiago
Pela experiência adquirida na direção de videoclipes, David Fincher criou para si uma identidade cinematográfica estilizada, violenta, ágil e desprovida de amor. Mesmo em seu filme mais “simples”, A Rede Social (2010), muitos pontos dessa identidade podem ser observados. A mesma linha de produção se repete no mais novo projeto do diretor, Os Homens Que Não Amavam As Mulheres (2011), adaptação do primeiro livro da Trilogia Millennium. Em sua versão da aclamada obra escrita por Stieg Larsson, o diretor reafirma uma obsessão pela mistura de gêneros – em especial pelo suspense e mistério – sempre com um ponto violento, sexualizado e visualmente espetacular. O filme recebeu diversas indicações e prêmios nessa temporada, e parte para a disputa do Oscar com cinco nomeações: Atriz (Rooney Mara), Fotografia, Edição, Edição de Som e Mixagem de Som.
A abertura do filme é um pesadelo em forma de videoclipe. Ao som da Immigrant Song, do Led Zeppelin, observamos diversos símbolos e situações que desnudam um pouco o passado de Lisbeth Salander, a investigadora punk que entra para o caso Harriet a fim de ajudar a descobrir um assassino de mulheres, ao lado do jornalista Mikael Blomkvist. O enredo é bastante fiel à obra original e consegue apresentar um resultado final melhor do que a versão sueca de 2009, mas Steven Zaillian deixa a desejar na construção geral do roteiro, com momentos vergonhosamente insípidos e sem propósito.
Embora o roteiro tenha tendência a simplificar demais, Fincher conseguiu dar uma cara ousada e vívida à obra, com sequências dramáticas e cruciais muito bem filmadas, e perfeitamente editadas por Kirk Baxter e Angus Wall. Assim como na versão sueca, o filme deixa o lado mais humano explorado como “enxerto de situação geral” no livro. Tal como Arden Oplev em 2009, David Fincher trouxe o conteúdo mais pesado, abordando detalhadamente os assassinatos e o processo de investigação, explorando a guerra interna da família Vanger, as intrigas políticas no meio das corporações e a questão da mulher agredida, representada aqui em sua consequência máxima, fatal e final: o assassinato impune.
Quando Stieg Larsson escreveu a Trilogia Millennium, seu objetivo era relatar em uma trama de suspense e apelo popular, duas situações. A primeira, essencialmente política, se refere ao aumento dos partidos nazistas na Europa contemporânea, e o autor faz isso desde a raiz do problema, com representação nos irmãos de Henrik Vanger. A segunda, é uma situação plural, podendo ser enxergada genericamente como crítica social, seja à questão da mulher, da corrupção, do monopólio econômico das corporações estatais, da justiça institucional, etc. David Fincher faz de seu filme um grande espetáculo hollywoodiano, onde não há lugar para esse lado potencialmente crítico e politizado. Até a postura política de Lisbeth Salander ganha um ar tremendamente passivo – sua personagem ganha aqui uma construção puramente doentia, embora seja contraditoriamente muito doce. A Lisbeth de Noomi Rapace parece ter conseguido mais coisas nesse ponto.
A cargo de Jeff Cronenweth – conhecido de Fincher desde Clube da Luta (1999) – a fotografia entrega uma pura estilização dos espaços, optando por uma palheta de cores predominantes do amarelo ao verde, sendo todas as tonalidades fotografadas em ambientes doentios. Um dos exemplos desse uso está no amarelo da casa de Martin Vanger, o único lugar em Hedestad fotografado nessa tonalidade. Trazendo a expressão intensa, violenta, aguda e estridente da cor, o diretor consegue fazer um falso contraste dramático entre o verde humano (porém, mais para o mofo do que para o broto), do restante dos cenários da ilha, que nas tomadas externas, traz a falsa paz do branco e do azul: a neve, o céu, o mar.
A trilha sonora do filme é assinada por Tret Reznor e Atticus Ross, e estabelece um interessante diálogo com o filme, no campo do horror. Não há prodígio na composição, mas a trilha abraça o filme, ressalta o medo ou a expectativa em determinada cena, ajuda a introduzir ou finalizar alguns momentos importantes.
Já no campo das atuações, as ressalvas são muitas, posto que maioria do elenco não conseguiu firmar com segurança e qualidade as suas personagens – e aqui partimos para um campo subjetivo, de modo que peço compreensão do leitor para lidar com opiniões adversas e entender, a partir desse ponto, a inevitável comparação com o filme anterior. O meu destaque vai para Rooney Mara como Lisbeth Salander, numa atuação bem técnica e, como já dissemos, contraditoriamente doce em alguns momentos, mesmo assim, digna do afã criado em torno da atriz. Daniel Craig é um Mikael Blomkvist insosso, com raros momentos bons na tela. Christopher Plummer interpreta um Henrik Vanger mediano, muito aquém do carismático personagem vivido por Sven-Bertil Taube, na versão sueca. Stellan Skarsgard assume com graça e psicopatia o seu Martin Vanger, e brilha em interpretação muito bem calculada. Mais três atuações são dignas de nota: Joely Richardson, como Anita Vanger; Geraldine James, como Cecilia Vanger e Goran Visnjic, no pequeno papel de Dragan Armansky.
David Fincher nos presenteia com mais uma história inteligente e de tirar o fôlego. O final nos traz a estratégica desaceleração da obra literária – com uma leve mudança do original –, mas é inegável que faltou perspicácia de Zaillian para escrever o desfecho. Uma vez que o filme não abordou a parceria Michael / Lisbeth após o caso Harriet, a cena final parece deslocada e sem propósito para a maioria dos espectadores que não leram o livro. Pecados à parte, as virtudes do filme são muitas, e merecidamente farão dele um dos melhores lançamentos de 2012.
OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES (The Girl With The Dragon Tatoo, EUA, Suécia, UK e Alemanha, 2011).
Direção: David Fincher
Roteiro: Steven Zaillian (baseado na obra homônima de Stieg Larsson).
Elenco: Rooney Mara, Daniel Craig, Christopher Plummer, Stellan Skarsgard, Steven Berkoff, Robin Wright, Yorick van Wageningen, Joely Richardson, Geraldine James.
Duração: 2h40min.
FILME MUITO BOM. FORTEMENTE RECOMENDADO.