por Luiz Santiago
Em Crepúsculo dos Deuses (1950), Norma Desmond responde à afirmação “Você era uma grande atriz” com a emblemática frase “Eu continuo grande. Os filmes é que encolheram.”. Se nos perguntarmos qual o motivo principal dos filmes ter encolhido, segundo a visão da atriz decadente no clássico de Billy Wilder, encontraremos como resposta "a chegada do som". Não é segredo para ninguém que a passagem do cinema mudo para o sonoro arruinou um sem número de carreiras no cinema, em todos os setores de produção.
O Artista (2011), aclamado e delicioso filme de Michel Hazanavicius, revisita esse período do cinema em um sentido bem mais pessoal do que fizeram Stanley Donen e Gene Kelly em Cantando na Chuva (1952). O filme conta a história de George Valentin, famoso ator do cinema mudo que vê sua carreira arruinar-se com o evento dos filmes falados, em 1929. Ele assiste a escalada de Peppy Miller, uma jovem dançarina que se adapta muitíssimo bem ao novo formato do cinema. Os encontros e desencontros entre os dois atores sustentam o roteiro assinado pelo próprio Hazanavicius, e caminham para um final digno do cinema que homenageia, carregando as feridas do tempo histórico em que foi produzido.
O elefante [preto e] branco
A História nos prova que a evolução tecnológica só é plenamente positiva dentro do campo da tecnologia, porque seus efeitos colaterais acabam por eliminar alguém, algo ou algum grupo por completo. Quando se trata de arte, a discussão sobre “evolução” é bem mais complexa e polêmica. Há quem não enxergue superioridade entre uma criação computadorizada e uma pintura rupestre, ambas podem ser denominadas arte e são valiosas pelo que são. Todavia, a obra digital tende a concentrar maior simpatia das massas. No caso específico do cinema, seja pelo acesso fácil, pela rápida reprodução ou pensamento contemporâneo ligado à imagem de efeitos, a criação aliada à tecnologia tende a encantar mais do que a chamada “arte do passado”. Então surge O Artista, um filme quase mudo, preto e branco, metalinguístico e com homenagens clássicas a perder de vista. A discussão nas entrelinhas do filme questiona o valor da arte no tempo.
A cena de abertura em O Artista mostra um homem sendo torturado (numa homenagem a Metropolis, de Fritz Lang), onde vemos o ator George Valentin (Jean Dujardin), que se recusa a falar. Ironicamente, esse será o dilema do ator dali a alguns anos, com a chegada do cinema sonoro. A diferença de pensamento entre George Valentin e Peppy Miller demonstra o conflito das gerações e a superação do velho pelo novo. Uma vez questionado e relativizado o valor de um e outro, voltemos o nosso olhar para o interior do filme.
A começar pela trilha sonora, O Artista transpira a arte que é o cinema. Na verdade, é mais que uma homenagem, se levarmos em conta que se trata de um filme de 2011. Ludovic Bource realiza um trabalho plural, consciente de que sua música assumiria a narração do filme, muito mais que a sequência lógica dada pelos intertítulos. A música cumpre com louvor o papel de guia supremo num filme que usa o som apenas duas vezes, mas de maneira tão brilhante, que o impacto no espectador é tal como se fosse na plateia do início dos anos 1930, que ouvia pela primeira vez os sons dos objetos nas películas, as risadas, a respiração ofegante, as vozes dos atores. Já a fotografia de Guillaume Schiffman nos lembra o trabalho de Gregg Toland nos anos 1940, porque não se prende apenas na iluminação criativa para um P&B moderno, mas realiza truques de projeção, sombras, contrastes, e dramática intensidade nos dois tons, usando ainda uma "pigmentação de cartelas", aquelas cores dominantes de todo o quadro típicas do primeiro cinema.
O elenco é de uma graça transbordante. Jean Dujardin brilha em seu papel à la Rodolfo Valentino + John Gilbert; seu sorriso e interpretação são tão autênticos, que George Valentin é a personagem que mais se parece com um ator do cinema mudo. Bérénice Bejo esbanja simpatia. O par que a atriz faz com Dujardin é poderoso, definitivamente cria e vende a força dramática e encantadora do filme. O elenco de apoio é de igual vigor. John Goodman e James Cromwell estão ótimos em seus papeis, e o cão Uggy consegue encantar e divertir como o ponto humorístico do filme.
O Artista é um filme ousado. Ao discutir a arte, vai por uma trilha diferente daquela seguida por Abbas Kiarostami em Cópia Fiel (2009). Seu caminho é o da oposição entre duas eras cinematográficas, e o resultado é belo, mas incômodo em certo ponto, se racionalizarmos o seu significado histórico. Com o afastamento da câmera e revelação da equipe em uma panorâmica, tal qual fizera Fellini em E La Nave Va (1983), Hazanavicius desnuda seu filme e fecha a obra com chave de ouro, abrindo caminho para as novas possibilidades que a sétima arte pode trazer.
O Artista é daqueles filmes que despertam a personalidade bipolar do espectador, transmitindo uma gama de sentimentos e sensações em menos de duas horas de duração. Se não fosse esteticamente espetacular e bem dirigido, o filme ainda valeria pela ousadia, não a ousadia desmedida e despropositada, mas uma ousadia crítica, que propõe uma viagem, uma discussão e uma dança com a Sétima Arte, no melhor estilo do cinéfilo que gosta de brincar de dissecar o cinema.
Elenco: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann Miller, Missi Pyle, Malcolm McDowell.