2 de jun. de 2011

Maridos e Esposas (1992)


por Luiz Santiago


     Dez anos depois de dirigir o seu primeiro drama, Woody Allen constituiu uma linha firme de obras pessimistas e profundamente analíticas. Nelas, se havia humor, ele surgia em par com reflexões incômodas, culpas e crimes. Essa fase que vai de A Outra (1988) a Desconstruindo Harry (1997) possui uma forte influência da instituição familiar, de questionamentos sobre as relações amorosas duradouras e sobre a inadequação das pessoas às realidades das quais lutam sem sucesso para se livrar (temas espalhados por toda a filmografia do diretor, mas que nesse momento ganham intensidade máxima). A imagem social de uma vida estável com filhos, casamento e religião, passou a ser a linha de frente do ataque cinematográfico de Allen, que mesmo usando de motivos cômicos ou de outros gêneros como em Um Misterioso Assassinato em ManhattanTiros na Broadway e Todos Dizem Eu Te Amo, trazia uma visão reflexiva, séria e incômoda para a obra em questão.

     Maridos e Esposas (1992) é o ponto mais crítico da carreira de Woody Allen, e consequentemente o seu filme mais autobiográfico em relação a vida conjugal. Embora tenha sido escrito dois anos antes de sua polêmica e escandalosa separação com a atriz Mia Farrow (processo iniciado durante as filmagens), Maridos e Esposas é visivelmente um exercício de sublimação, e traz indicações disso em seu roteiro. Por ser “documentário amador”, o filme elege a plateia como confidente das personagens e revela suas sessões de análise para a câmera. Um mar de culpas assumidas e desejos reprimidos são as constantes do filme. O argumento final ganhou um tratamento que exagerava ou aludia às questões matrimoniais do próprio diretor. A vida inspirou a arte e a arte melhorou a vida, porque Maridos e Esposas é um dos mais interessantes filmes que Woody Allen já dirigiu.


     Em sua particularidade, a história já é conhecida de outros roteiros do cineasta, mas diferente de uma obra como Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010), a ciranda de relações amorosas aqui não tem um ar cômico e nem é filmada com beleza técnica ou estética. A crônica de dois casais amigos que entram em um jogo de separação, reatamento e outras relações, é propositalmente filmada do modo mais amador possível. A câmera nunca está fixa, a fotografia é inconstante, há ângulos descentralizados, tomadas fora de foco, não há trilha sonora, a não ser a música de abertura e fechamento (What is this thing called love?) e a edição é abrupta e nada convencional. Não apenas em seu conteúdo mas também na forma, Maridos e Esposas revela-se uma crise em película.

     É possível viver (e principalmente, envelhecer) sozinho? Essa questão parece ser o impulso inicial do filme, e a base para o diretor construir os sentimentos individuais de cada um dos personagens em cena. Em dado momento, a discussão sobre o que é estar solteiro ou casado alcança um patamar existencialista, e mesmo cada ator expondo o que pensa a respeito, o conceito fica aberto para o espectador dar a sua própria opinião. Percebemos então a tentativa de relacionar as questões internas da obra com as possíveis similaridades no outro lado da tela, tarefa que tornou o filme muito “acessível” ao espectador.



     Fazer um “filme amador por opção”, segundo declarações do próprio diretor, foi também um teste das possibilidades técnico-digitais que surgiam no início da década de 1990. Baixo orçamento e câmera na mão (no melhor estilo do cinema-verdade) tornaram-se paliativos artísticos do cinema que então surgia, o cinema que optava por imagens de baixa qualidade para sugerir um forte realismo e emplacar a adesão da plateia como integrante da história. Outras obras da mesma época como Ondas do Destino (1996) e principalmente A Bruxa de Blair (1999) usam da mesma técnica. Maridos e Esposas usa desse realismo técnico para “invadir” a privacidade dos espaços reservados às brigas e desabafos, tornando tão normal as complexas relações amorosas, que gera no espectador uma visão crítica sobre o tema, e daí surge a ironia do enredo e o “efeito do cotidiano patético” pretendido pelo diretor.

     Uma reflexão sobre casamentos fracassados e personalidades neuróticas pode não ser algo muito agradável de se ver, especialmente se a forma do filme acompanha o caos do conteúdo – o que é o caso –, mas Woody Allen compreende bem as regras do jogo de cena, narração e continuidade temática, o que deixa o filme instigante todo o tempo. A trama amadurece sem perder o viço, e ao final, é muitas vezes mais apaixonante que o início, embora deprimente, se analisarmos o rumo das coisas como um ciclo vicioso.

     Particularmente gosto de todos os trabalhos do diretor de fotografia Carlo Di Palma em parceria com Woody Allen, então só me resta citar a linha de criação imagética que o italiano usou nessa película. A câmera na mão serviu de impulso psicológico (ao lado da montagem de de Susan E. Morse, um tipo genial de “continuidade picotada” que ela levaria até a sua última parceria com Allen em Celebridades), trazendo as inquietações internas para a mobilidade nervosa da lente, sempre indecisa em que ponto do cenário se estabelecer. Mesmo nas cenas externas ou diurnas a fotografia é escura, como se a opressão das personagens viesse de todos os lados, ou como se o olhar viciado delas pintasse de tons invernais todo o cenário. A alternância de espaços cênicos e o jogo de cores (figurinos e sets), terminam por enriquecer ainda mais essa gama de indicações estético-psicológicas contidas na obra.


     Maridos e Esposas arrecadou diversos prêmios, além de receber, dentre outras, duas indicações ao Oscar, uma ao César e outra para o Globo de Ouro. Trata-se de uma pequena pérola de Woody Allen, talvez formalista demais para gostos mais idiossincráticos, incrustada na sua grande caverna de preciosidades em 35mm. É um filme para ser visto sem pressa, e definitivamente mais de uma vez. Um filme que gira a roda do amor e deixa a fortuna por conta do acaso. O restante... é apenas o restante.


* Esse filme ocupa o 11º Lugar no Veredicto nº3: Woody Allen


MARIDOS E ESPOSAS (Husbands and Wives, EUA, 1992).
Direção: Woody Allen
Elenco principal: Woody Allen, Mia Farrow, Judy Davis, Sydney Pollack, Juliette Lewis, Liam Neeson, Lysette Anthony.


FILME ÓTIMO. É IMPERDÍVEL ASSISTI-LO!

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